quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O autor

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António Manuel Venda nasceu em Monchique, no Sul de Portugal, em 1968. Publicou dez livros de ficção («Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», contos; «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão», narrativa; «Até Acabar com o Diabo», romance; «O Velho que Esperava por D. Sebastião», contos; «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», romance; «O Medo Longe de Ti», romance; «O Amor por entre os Dedos», contos; «O que Entra nos Livros», romance; «Uma Noite com o Fogo», romance; «O Sorriso Enigmático do Javali», narrativa). Destes, alguns receberam prémios literários, do Instituto Abel Salazar, do Centro Nacional de Cultura, da Câmara Municipal de Almada, da Secretaria de Estado da Cultura e da Sociedade Portuguesa de Autores.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

«O Amor por entre os Dedos»

(Contos, AMBAR, 2005)

Início de um dos contos do livro («A Chegada Tardia do Macaco»)
A Lua estava cheia, tão grande e tão brilhante que iluminava a multidão que enchia a praça central de Cerzedos. Pelo menos era isso que Kate jurava a pés juntos, ao telemóvel para Lisboa. Sentia-se nervosa, não porque do outro lado estivesse um ministro - e estava -, mas porque não conseguia deixar de pensar no que poderia acontecer se o macaco se perdesse pelo caminho. O cão tinha-a acordado de manhã, cedo, muito cedo. Tinha surgido de repente, depois de um encontrão com a cabeça na porta do quarto. O jovem escritor de Santo Estêvão achava-lhe graça, gostava dele, ria de cada diabrura que o via fazer. Naquele momento, no exacto momento em que o cão saltou para a cama, Kate julgou ouvir o jovem escritor, o som de um sorriso, apenas isso, mas foi algo que logo se desvaneceu.
(…)


Textos de opinião sobre o livro

Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 23.12.05
Sensibilidade e Paixão
É extremamente singular a aventura de António Manuel Venda num mundo cheio de fronteiras como é o da literatura portuguesa. O seu olhar não é o de um escritor urbano que tenta decifrar as misteriosas histórias que se vão desenrolando no país profundo. É, antes, o de alguém que comunga connosco essa raia atravessada por malteses que procuram um pouco de sentido para a sua vida. Obviamente o autor regressa ciclicamente a um território algures nas cercanias de Monchique, local de evasões, de sonhos e de onde é possível olhar para o vasto horizonte sem se ser contaminado pelo ruído típico das cidades.
Neste seu livro de contos, à volta dos encontros e desencontros entre um jovem escritor de Santo Estêvão e Kate, sente-se sempre a sensibilidade de um olhar às vezes inocente, outras vezes irónico, sobre o pequeno mundo português. Há sempre espaço para o absurdo, como no conto «Uma Nuvem Negra de Pássaros» ou em «A caminho de Rassebeque»: «Ao que se jurava a pés juntos mesmo na entrada do recinto da feira, nunca ninguém tinha avistado um cão a voar em Monchique. Muito menos um dálmata. (…) Bom, o que é certo é que o cão de Monchique, afinal, era de plástico. Nem tinha sido atirado de uma manta, se calhar por isso ser um hábito apenas de Espanha. O cão tinha-se soltado das mãos de uma criança e voado pelos ares, bem alto, todo direito, cada vez mais pequeno, até se tornar apenas num ponto quase invisível do céu.»
António Manuel Venda descreve o amor de um forma única, como se a inocência pudesse voltar a conquistar-nos («Kate continuava sem dizer nada. Mas também não mexia os pés do chão. De repente, o jovem escritor de Santo Estêvão viu-a espreitar por entre os dedos. Sim, ela espreitava por entre os dedos, só aos bocadinhos, mas espreitava. Se afastasse as mãos, quem sabe não mostraria um sorriso...»). Há nestas páginas uma fonte de histórias aparentemente simples que nos deixam a pensar no que temos andado a perder com o tempo: a capacidade de olhar.


Torcato Sepúlveda, Grande Reportagem, 24.12.05
Outra literatura
– «O Amor por Entre os Dedos», de António Manuel Venda, impõe um humor negro bondoso. Portugal está perdido, os portugueses talvez não.
António Manuel Venda (nascido em Monchique, em 1968) é uma figura singular. Há algo na sua literatura – tanto na novela «Os Abençoados Fiéis do Senhor São Romão», como no romance «Até Acabar com o Diabo», passando por esta série de narrativas, «O Amor por entre os Dedos» – nada costumeiro. Ligação intensa à realidade, urbana ou citadina; atenção aos costumes dos jovens contemporâneos; bonomia irónica que compreende, mas não desculpa. Os contos de ‘O Amor por entre os Dedos’ têm dois fios condutores que lhe marcam o carácter, mesmo quando fora do centro da acção: o jovem escritor de Santo Estêvão e a extraordinária Kate, a bela rapariga de Cerzedos por quem o jovem escritor está apaixonado. Nesta quadrícula narrativa encaixa certa província – adivinha-se o Sul do Alentejo e a serra algarvia – e os tiques citadinos de uma modernidade pacóvia. Santo Estêvão e aldeias adjacentes são uma espécie de Macondo portuguesa, roçando pudicamente o fantástico; mas a Lisboa de António Manuel Venda é mais pacóvia do que a província. O conto «O Ponta de Lança Espanhol» prova-o, com os seus tiques de oralidade futebolística.
O autor é um lusitano que se reconciliou com o destino. Critica-nos, mas sabe que seremos sempre assim. A sua ironia bondosa lembra o escritor Alphonse Allais (1854-1905) de quem o surrealista André Breton dizia, em «Antologia do Humor Negro»: «(…) É exímio em dificultar a vida do indivíduo satisfeito, bêbado de truísmos, cheio de si, com quem se cruza todos os dias na rua.» Surrealismo… Certos contos de António Manuel Venda parecem – com o sarcasmo a menos – desenvolvimentos de «anedotas» do surrealista português Mário Henrique Leiria (1923-1980) em «Contos do Gin Tonic». A prosa de António Manuel Venda é outra literatura.

Fernando Venâncio, Expresso, 13.05.06
Desde que começaram a surgir, há dez anos, os contos de António Manuel Venda mantêm-se reconhecíveis à primeira abordagem. Uma ingenuidade desarmante e patentemente trabalhada desenha cenários que, sendo deste mundo, descansam em altas improbabilidades. Ou é a Natureza que gravemente desvaira, ou é o reino animal que ganha um imprevisível discernimento, ou são os poderes estabelecidos, locais ou nacionais, que entram em mais que habitual tresvario. Quando não for tudo isso ao mesmo tempo. Daí, o resvale mental colectivo está sempre a um passo, que, não raro, sobrevém rapidamente. Assim também em «O Amor por entre os Dedos», que reúne doze contos objectos de oferta, há uns bons anos, a escolhidos e internetizados leitores. Em casos de particular pilhéria, são autênticos sketches do Gato Fedorento avant la lettre. Perante este doce ambiente de geral desatino, só admira não sucederem verdadeiras desgraças. Mais: quase sempre tudo volta à normalidade (relativa, nunca fiando), podendo sustentar-se que nada adveio ao mundo de grandemente perturbador, não podendo, até, afirmar-se com segurança que algo de extraordinário se passou. De resto, várias constantes percorrem o volume: a localização algarvia dos eventos, a presença do «jovem escritor» local a quem Lisboa se rendeu, a paixão do próprio pela livreira alentejana Kate. E os media, que tudo farejam, tudo amplificam. Até ao Apocalipse, que o último conto, «Medo de Raflin», de felicíssima feitura, transmitirá em directo.

Luís Mateus, Portugal Diário – http://www.portugaldiario.iol.pt/, 24.07.2006
Para lá da realidade
– António Manuel Venda traz-nos um mundo de cães que falam e de bandos de pássaros que cobrem cidades inteiras. Para ler, sem preconceitos.
Seria um bom livro para David Lynch filmar, e o realizador nem teria de mexer muito para que todos reconhecessem a sua marca. António Manuel Venda procura o nonsense em cada diálogo, tenta surpreender-nos com episódios bizarros e anormais e não poupa os homens do poder, com socos sucessivos no estômago, sempre que representa um ministro, um presidente de câmara, os seus assessores ou mesmo o resto da população. «O Amor por entre os Dedos» (AMBAR, 2006), o amor de um «jovem escritor» pela dona de uma loja de livros, é a fachada para um trabalho mais abrangente, que navega quase sem rumo sobre a imaginação do autor.
Ao ler os diálogos quase ingénuos, as descrições quase cínicas dos intervenientes e das suas acções, poderíamos facilmente transpor as suas personagens para mundos como o de «Alice no País das Maravilhas», de Lewis Carroll, ou a Londres-de-Baixo de «Neverwhere», de Neil Gaiman. Depois, há cães que falam, gigantes assustadores, extraterrestres com caras em bico, nuvens de pássaros que cobrem cidades inteiras e o misterioso Raflin. Tudo no Alentejo profundo, entre Cerzedos, Santo Estêvão, Marmelete e Monchique.
«E em Monchique? Aí, o presidente da câmara tinha querido saber o que se passava. Esse é que era bem espertalhão... Como tinha engordado em tantos anos... E os espertalhões... O presidente da câmara tinha visto neles e no seu projecto de Rassebeque uma boa ajuda. Talvez da vila houvesse quem os acompanhasse na viagem para Rassebeque, quem sabe até tornando-a conhecida internacionalmente. A publicidade... Como o presidente da câmara de Monchique acabou por aplaudir os trinta e dois voluntários...», escreve António Manuel Venda, desta vez bem mais directo do que em parágrafos anteriores.
- Sem hesitações e preconceitos
«O Amor por entre os Dedos» é o sétimo livro de ficção de António Manuel Venda e percebe-se que o autor chegou a um estado de autoconfiança em relação à escrita e às suas ideias. Segue-as até ao fim, saltando finais de capítulos como barreiras, sem se vislumbrar o mínimo de hesitação. É também com essa confiança que chegamos à última página, ao último conto que compõe o romance do «jovem escritor» com a bela Kate, conscientes de que não perdemos o nosso tempo.
Não se trata de um livro perfeito, mas acredito que não o pretende ser. Transporta a imaginação do autor para o papel – a de António Manuel Venda parece não se esgotar nas sete obras já escritas – e se esperarmos encontrar o inesperado ao virar da página, se não partirmos com preconceitos para a sua leitura, ficamos felizes. Por termos tido um bom livro por entre os dedos.


Apresentações

Texto de suporte à apresentação de José Alberto Quaresma, em Monchique (Dezembro de 2005)
Um bom algarvio (ou mau, se quiserem), como eu, nunca sabe se foi sorte ou azar aqui ter nascido. Vivemos muitos ou poucos anos com esta dúvida. Um dia a dúvida deixa de existir. Nunca nos será devidamente desfeita.
Um homem afasta-se uns bons anos do Algarve. Nunca se afasta. Leva consigo esta luz forte. Descobre-a ou inventa-a em qualquer latitude. Farisca os cheiros da sua terra em todos os lugares do mundo. Não tem outro remédio.
No nosso tempo, essa luz continua a cintilar. E esse cheiro a reacender. Até, sabe-se lá como, em qualquer computador ligado à Internet. Para mal dos nossos pecados.
Pode passar muito tempo. Mas esse sentir profundo, quase a ranger a melancolia, como um pequeno e doce sobressalto, resiste ao longe. Lá bem no fundo, devem ser pequenos medos, ou resquícios deles, que vêm do remoto reduto da infância. E moem muito, sem se saber por quê.
***
O Algarve num passado não muito distante – um século, na longa viagem da gente, é ontem – salinou-se nos pequenos medos, numa melancolia sólida, num ensimesmamento agridoce, que pouco passou para além da modorra, do torpor ou da indiferença. Ressoou por séculos na literatura oral, que passou de geração, pela voz das mulheres e de alguns homens, e que foi retirada do esquecimento, aqui e ali, nas recolhas etnográficas.
Tudo isto não deu escrita abundante. Leite de Vasconcelos, Teófilo Braga e, mais especificamente no Algarve, Xavier Athaide de Oliveira, Estanco Louro ou, aqui em Monchique, José Gascon, entre poucos mais, registaram o possível.
Não muito, desse acervo oral, foi extraído para moldar uma escrita ficcional vigorosa. Manuel Teixeira-Gomes e, mais recentemente Lídia Jorge, criaram, desse terriço, harmoniosas páginas.
A poesia talvez tenha roubado mais dessa matéria-prima, mas muito em silêncio, como convém: de João de Deus a Paulo Teixeira – passando por Ramos Rosa, Gastão Cruz, Casimiro de Brito, Nuno Júdice –, esgravatou-se o belo até mais além, aos lençóis freáticos espirituais do Mediterrâneo.
Não saberemos qual será o justo peso do nosso passado nas futuras explosões de criatividade da literatura que irá ser feita no Algarve ou com o Algarve. Nem, tampouco, a intensidade cultural e estética que irá subsistir nesta terra que não cuida da sua memória, deslumbrada apenas com sol e betão. Não sou optimista. Mas quem cá ficar, daqui a umas dezenas ou centenas de anos, que me esclareça. E me envie boas novas para o meu e-mail privado do Inferno, onde deverei andar a penar por esse tempo. Aguardarei com curiosidade, sem dúvida.
***
Tudo isto para entrar mais directamente no que aqui nos traz.
Há uma esperança poderosa que é muito mais que uma certeza consolidada. E é surpreendente que venha de uma geração, supostamente sem memória do passado.
António Manuel Venda é essa, quase solitária, certeza aqui no Algarve. Com este apelido, Venda, tinha de ser, à força, licenciado em Gestão de Empresas e pós-graduado em Marketing. Os académicos não devem achar graça nenhuma que estas habilitações se intrometam no Olimpo da Literatura. Só que o intruso é muito bom. Não há nada a fazer. E anda lá por mérito próprio. E não se pense que o homem já publicou sete livros de ficção, e recebeu vários prémios literários, porque sabe de Marketing…
António Manuel Venda é muito mais do que um portador positivo dessa química inorgânica da terra e dessa substância dos sonhos, vindas do fundo do tempo algarvio, que se expressava nos «medos», «silêncios», «títulos», «espíritos», «sonhos», «quebrantos», «almas penadas». Todos estes medos e encantamentos frequentavam intimamente os nossos antepassados algarvios, sobretudo do barrocal e da serra, onde todos temos sempre (mesmo os que como eu nasceram à beira-mar) um familiar próximo. E vá lá saber-se porquê? O quê? Esta intimidade.
Será que António Manuel Venda, em tempos remotos, que remontam ao século XIX, conviveu de perto, entre outras e outros, com as «jãs» que tinham a virtude espantosa de deixar «tão afiado como o cabelo» o linho que «se deixava à noite no borralho do lar»?
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Provavelmente conviveu. Como agora com outros, como o Gagueline Gagueloso que António Manuel Venda vos dará a conhecer. É um privilégio conviver com gente boa ou ruim, bem e mal criada. Filhos nossos, pois claro. Nossos não, do António Manuel Venda. A sua imaginação possante parece ter as raízes ainda mais profundas do que o chão da casa dos seus avós até ao centro da terra, onde ouvia ecos profundos deste Algarve granítico, quase imutável até à primeira metade do século passado.
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Esta nova colectânea de contos «O Amor por entre os Dedos» volta a trazer-nos a fulgurância da fantasia poderosa de António Manuel Venda, já evidenciada nos seus anteriores livros, do seu primeiro «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», já quase com dez anos, até ao romance de 2003, «O Medo Longe de Ti».
Este «O Amor por entre os Dedos» é constituído por uma dúzia de contos. O fio romanesco de cada um deles vai soltando pequenos filamentos que recorrentemente tropeçam, ao de leve, no «jovem escritor» e na sua apaixonada (a «gira» Kate), remetendo sempre, ainda que de forma muito fragmentária, para o primeiro dos contos que dá o título ao livro.
São histórias, assombrosas, que nos divertem, que nos encantam, que constantemente fazem repenicar a cordinha sensível que nos vem distendida da infância. São textos escritos numa linguagem concisa, clara, muito despojada.
Esta linguagem, muito contida, parece entrar em conflito com a exuberância fantasiosa do conteúdo, de textura muito barroca. Só na aparência. A forma (muito próxima da raiz popular do relato oral) serve na perfeição o conteúdo, copioso de engenho e de devaneio.
São múltiplos registos, tantos e tão incertos, que, às vezes, até parece que somos nós, leitores, que estamos a inventá-los ou a ouvir os seus ecos na surdina das nossas primeiras marés uterinas. Textos de uma ironia precisa, subtil, e de grande sentido de humor que revelam, por parte do autor, uma capacidade notável de efabulação e um profundo conhecimento da sociedade portuguesa, seja da mais cosmopolita, ou da sociedade algarvia do interior (da serra e do barrocal) e do litoral, lugares onde erram as suas múltiplas personagens.
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Não vos revelo nada que vos possa perturbar o prazer de ler, e desvendar, os mistérios espantosos destas narrativas. Mas só vos queria levantar minúsculos e vagos sinais para vos aguçar o apetite.
Temos de tudo. Muito do que a vida nos segura. Muito do que a imaginação de qualquer comum mortal, como nós, não alcança. A imaginação de António Manuel Venda faz guindar o irreal ou a mentira ao pódio da arte. O sonho que se insinua na realidade e se mete por ela adentro. Ou a realidade que se transfigura nos lugares inventados, próximos dos lugares reais, e que com eles se confundem, na serra de Monchique ou no Alentejo.
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É o medo do «jovem escritor» de Santo Estêvão, o medo vindo de dentro, de si, aquele medo que vai ficando registado nos pequenos movimentos do sismógrafo da alma, no primeiro conto do livro «O amor entre os Dedos». É a inquietação da viagem e da boleia a desconhecidos (Alguém, hoje, ainda dá boleia a desconhecidos?). E as cheias devastadoras que, na ressaca, fazem aparecer uma ilha estranha observada, por um padre, pelo buraco de pendurar a cruz na parede. E o presidente de câmara que tem uma assessora competente só para lhe escovar a caspa do fato e que se aperalta na importante cerimónia de inauguração de um busto. E o colossal Gagueline, já citado, que traz aterrado o bom povo de Marmelete; Marmelete, que tem a sorte de lá viver um tal Zifardo, homem de respeito… E o macaco que não chega no horário previsto para abrilhantar a festa de Cerzedos. E o cão que é visto a voar à entrada do recinto da feira de Monchique. E a praga de pássaros que se abate sobre a minha terra, Portimão, fazendo do dia noite. E o terror dos relvados, o ponta-de-lança espanhol, o poderoso Kiko Trujillo…
E muito mais não ouso revelar. Nem desarranjar, com descrições mais ou menos corrompidas pela minha leitura pessoal que é, como qualquer outra, dificilmente transmissível.
***
Há algarvios que nos merecem muito. Transportam vestígios de nós mesmos, dos tempos imemoriais. Revelam-nos, de forma admiravelmente criativa esses vestígios, escondidos no fundo da memória, ou silenciados com o desaparecimento das gerações anteriores. E, por uma secreta alquimia, transmutam-nos em ficção inédita, de rara beleza, como este «O Amor por entre os Dedos».
António Manuel Venda faz-nos descobrir que esses vestígios são não apenas nossos. Atingem a universalidade, de expressivamente originais que são.
Devemos estar infinitamente gratos a António Manuel Venda. E só há uma forma de mostrar reconhecimento. Inclinar a cabeça e ouvir pacientemente a sua voz. Ouvir os rumores deixados luminosos no labor da sua escrita. Isto é, ler. Ler o que nos eleva. Ler esta prosa que nos reconcilia com a nossa terra e, através dela, com o resto do mundo.
***
Nunca o saberei, como disse no início, se foi sorte ou azar ter nascido no Algarve. Sei que é sorte, e sorte grande, ter um conterrâneo com esta rara sensibilidade e que, no silêncio da caligrafia, atinge tamanha fulguração.

Texto de suporte à apresentação de Paula Campos, no Porto (Janeiro de 2006)
Um livro é sempre um pedaço de história ou de histórias em que, na diversidade de temas e formas de escrever, as mais diferentes motivações se entrecruzam num desfilar de personagens infinitas, despertando em nós a curiosidade mórbida de novas experiências, ou melhor ainda, uma busca desenfreada de processos de identificação de emoções e sentimentos que são nossos, ou de alguma maneira foram vivenciados por cada um de nós.
O amor por entre os dedos… Se, como diz o poeta, os olhos são o espelho da alma, o título de um livro é a porta de entrada, a energia motivacional de quem quer perceber, de quem deseja interpelar e sondar os interesses e as motivações do autor, na esperança de que a mensagem consiga responder a um vazio que a nossa vida precisa de preencher, na esperança de encontrar alguma coisa de que andamos à procura. Outro dos motivos que nos faz ler uma obra é aceitarmos o desafio de alguém que no-la aconselha, alguém significativo a quem reconhecemos sensibilidade e intuição.
Porque lemos livros que falam de amor?
O amor ocupa um lugar particular na história da humanidade e é talvez, pelo papel central que ocupa nas nossas vidas, um dos únicos temas verdadeiramente universais. O amor numa ou noutra dimensão, num ou noutro estado, já foi por todos nós experimentado e sobre ele melhor ou pior temos uma versão própria. Assim, ao assumir múltiplas facetas, é exactamente a sua diversidade que o torna único e irrepetível.
Este livro de que vos falo hoje é um livro que só quem acredita que o amor é em todas as dimensões uma forma de arte consegue ler. Isto porque a descoberta deste amor só é possível através da ficção de cada uma das personagens e de cada um dos locais, que de semelhante só têm o pano de fundo do universo rural algarvio, terra natal do autor, e alentejano.
Acredito que cada livro e cada estilo literário escolhido reflectem sempre o resultado de um mecanismo projectivo, por vezes inconsciente, do seu autor. Com a sua leitura, conheci um pouco mais do António, do bocado de si que não consta da biografia e que a sociedade não conhece. Assim, qualquer obra literária é também um acto de criação e de relação individual.
O amor por entre os dedos… Longe, na solidão, o amor era um sonho, uma imagem, um tu que preenchia o exacto lugar da ausência, uma vida inventada que tinha as cores do paraíso. Este amor protagonizado através da relação de um jovem apaixonado, cuja identificação ao longo da obra é a de «jovem escritor de Santo Estêvão», e de Kate, a bela rapariga de Cerzedos.
É aí, na imaginação nossa e na dos outros, que tudo começa. Sobre o amor sonhado, vivido, o autor solta-se, deixando que as palavras busquem a sua essência num sonho apaixonado que vive, mais do que da presença, da ausência do objecto de amor e dela se alimenta.
No entanto, logo a seguir este amor sob forma de anseio, de desejo, de sentir, vai ficando contido com a aproximação do objecto amado, e o medo… «Sim, era o medo, de novo o medo, o de sempre. Começava a sentir-se inquieto, nervoso, como se o medo entrasse mesmo através dos vidros do carro. De onde é que viria o medo?/ Estava atrapalhado, fragilizado, fosse lá pelo que fosse. Pelo medo, pelo medo principalmente. Sabia que era ali a direcção da casa da família de Kate, onde ia ficar alguns dias antes da viagem para as ilhas. O jovem escritor hesitou.»
Este amor contido por uma mão entreaberta onde o medo se esconde nos dedos, sinal da materialização dos sentimentos, deixando o espaço entre esses mesmos dedos para o fluido emocional, imaterial, que caracteriza o sentir e onde sem forma nem espaço o amor pode circular.
Este sentimento de ausência surge camuflado num medo que simbolicamente se esconde numa mão entreaberta, onde o amor contido espreita por entre os dedos, em ensaios de contenção e devaneio à procura da sua identidade.
«Kate estava com a cara tapada. Tinha conseguido tapar quase toda a superfície da cara, com as mãos ao lado uma da outra… O jovem escritor pensou que ela de repente ia começar a chorar, se calhar de raiva. O que é que ele faria se isso acontecesse? O jovem escritor pensava em tudo aquilo, pensava em tantas coisas, e tremia.»
Apercebemo-nos pois que em matérias de amor, o pensamento e a razão, talvez por esta desconhecer a linguagem do coração, entram muitas vezes em conflito, conflitos estes que muitas vezes duram a existência e, em muitos casos, só a eternidade consegue libertar. A razão impede, contém, controla, causa muitas vezes insegurança, incerteza. «O Jovem escritor não sabia o que fazer, nem se sentia com coragem para dizer uma palavra que fosse. Apenas tremia.»
Como se de repente assistíssemos a um confronto do humano, do sobrenatural e da natureza do amor debelados numa esperança que o olhar mesmo que por entre os dedos consumasse o milagre da explosão do desejo contido, nem que somente expresso num sorriso. «De repente, o jovem escritor de Santo Estêvão viu-a espreitar por entre os dedos. Sim ela espreitava por entre os dedos, só aos bocadinhos, mas espreitava. Se afastasse as mãos, quem sabe mostraria um sorriso…»
De seguida, o amor passa para uma constante comunicação e comunhão entre os três mundos, o sobrenatural, o humano e o da natureza. E de forma surpreendente somos de repente brindados pelo autor com um desamarrar destas emoções contidas, transformadas de diferentes formas numa série de contos que surgem como uma possibilidade de conciliação entre a natureza mais intrínseca do amor e a cultura, capaz de inspirar uma nova visão do amor.
Tudo o mais é narrado ao longo de doze contos de ficção, num tom irónico, nalgumas situações de um sarcasmo subtil mas contundente, onde o autor vai construindo metaforicamente as suas histórias, de forma insólita e intangível – diria mesmo que em alguns momentos a tocar o irrealismo intelectual e existencial.
Numa linguagem carregada de simbolismo, onde os regionalismos dão força à mensagem, o autor vai-nos fazendo descobrir um novo tipo de sociedade, a necessidade de uma nova organização humana cujos valores se aproximem mais do nosso sentir.
Carregado de metáforas que alegoricamente nos levam além do real, do óbvio, o livro é um tiro no escuro, um tiro que só se sabe que é disparado, não se sabe quem será o alvo.
O alvo é o coração e a razão de cada um de nós, leitores, desencadeando um desafio simples mas de grande profundidade e complexidade existencial. No final, fica a reconstrução de cada uma das histórias no livro de contos da nossa vida.

«O que Entra nos Livros»

(Romance, AMBAR, 2007)

Resumo
Uma estranha carta sobre o romance de António Manuel Venda «O Medo Longe de Ti», publicado em 2003, chega ao autor através da editora, depois de para lá ter sido enviada por um homem que assina J. D. Sapinho Júnior. Trata-se de um velho livreiro de Évora que parece muito interessado numa das personagens e que a certa altura escreve o seguinte: «poderia ajudar-me desde já se, na volta do correio, me enviasse (caso tenha nos seus apontamentos) uma descrição o mais detalhada possível de uma personagem do seu último romance, o mágico velhinho, personagem da qual, em todo o texto (que li por diversas vezes), não abunda a caracterização». O livreiro tem uma longa história para contar. (entrevista aqui)


O início do livro
Chamo-me António Manuel Venda. Talvez não devesse começar assim, até porque se este relato for publicado, imaginemos que sob a forma de livro, o nome do autor aparecerá na capa. E depois, no interior, é bem provável que esse mesmo nome seja repetido quase até à exaustão, no topo de cada uma das páginas da esquerda, as de numeração par, numa espécie de desafio ao título, que dominará cada uma das da direita. Mas também há a hipótese de este relato não conhecer a publicação, e aí as coisas já serão diferentes. Se alguma pessoa o encontrar, nem interessa agora estar com especulações sobre o tipo de suporte, poderá querer logo saber quem o escreveu. Neste caso, a presença do nome a abrir o texto não será despropositada. Mas adiante, que os factos são muitos e importa deixá-los escritos antes que a memória, a minha memória, os remeta para um qualquer compartimento enevoado, daqueles onde as coisas parecem ser apenas o resultado de um sonho.
Em Setembro de 2003 publiquei um romance intitulado «O Medo Longe de Ti». Conta uma história de amor. Um jovem escritor português, que vive rodeado pelas suas personagens, encontra na Alemanha a rapariga mais bonita do mundo. Os dois apaixonam-se, mas o jovem escritor acaba por fugir. Isso acontece quando o medo de algum dia perder a rapariga se torna mais forte do que ele. Abandona um programa de estudos numa universidade da Floresta Negra em que ambos se tinham matriculado e viaja de regresso a Portugal. Uma das suas personagens, um mágico pequenino e de idade avançada, que lhe apareceu pela primeira vez quando estava na floresta em cima de uma árvore, faz a mesma viagem. O jovem escritor chega a imaginar como ele o segue num carro de modelo igual ao seu, e da mesma cor, mas de dimensões bem mais reduzidas. E as outras personagens acabarão por fazer um percurso idêntico, os «amigos», como o jovem escritor diz, e os «seres maus», expressão que também lhe pertence. Dezoito ou dezanove anos depois, o escritor, que nunca tirou da cabeça a rapariga mais bonita do mundo, e que continua a viver rodeado pelas suas personagens, inclusive pelo mágico, que é referido ao longo do romance apenas como mágico velhinho, tem um encontro surpreendente, em Lisboa, durante um debate literário.
Este é um resumo da história de «O Medo Longe de Ti». Por causa desse romance, durante os meses seguintes à sua publicação participei nalgumas iniciativas, principalmente em bibliotecas ou livrarias, além de feiras do livro. Falei da história, li pequenos excertos, conversei com leitores, estive em debates, dei alguns autógrafos... Enfim, a mesma coisa que tinha acontecido com os livros anteriores. Até que um dia, mais de um ano depois de o livro ter aparecido nas livrarias, corria o mês de Janeiro de 2005, aconteceu algo absolutamente… Bem, ia para escrever surpreendente, mas não, foi mais do que isso, muito mais.
Tudo começou com um envelope que recebi dos serviços da editora e que deixei uns dias em cima da secretária, por abrir, pensando que se tratava do convite para o lançamento de algum livro. Quando finalmente o abri, dei-me conta de que não era nada disso, de que se tratava de uma carta de alguém a tentar contactar-me através do endereço da editora. Não aparecia o nome de uma pessoa no remetente, mas sim o de uma livraria: «Sapinho Livros Lda». Confesso que não senti uma grande curiosidade em ver o conteúdo, tanto que coloquei a carta na pasta do trabalho e só à noite, ao arrumar alguns documentos, acabei por ficar a saber de que é que se tratava. Tinha apenas um cartão e uma folha A4, escrita de um dos lados, à mão, numa caligrafia muito cuidada e com uns curiosos salamaleques nas letras maiúsculas.
(…)


A carta do livreiro

Caríssimo escritor A. M. Venda

Escreve-lhe J. D. Sapinho Júnior para convidá-lo a deslocar-se à sua humilde livraria, em Évora, no endereço que poderá ver no cartão em anexo. Não é um convite para uma palestra sobre o seu último romance, nem tão-pouco para uma sessão de autógrafos. É, antes, para uma conversa comigo, que seria bom que tivesse lugar no espaço da livraria, e sobre a qual (a conversa, não a livraria) desde já lhe peço o mais absoluto sigilo. Agradeço que me confirme a sua vinda através do número de telefone que aparece no cartão.
Não tenho o seu endereço, nem sei onde reside (talvez em Lisboa, como boa parte dos nossos escritores), pelo que resolvi contactá-lo através da prestigiada casa que o edita.

Cumprimenta-o,

J. D. Sapinho Júnior

Acrescento – poderia ajudar-me desde já se, na volta do correio, me enviasse (caso tenha nos seus apontamentos) uma descrição o mais detalhada possível de uma personagem do seu último romance, o mágico velhinho, personagem da qual, em todo o texto (que li por diversas vezes), não abunda a caracterização.


Textos de opinião sobre o livro

Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 22.06.07
Viagem à volta do nosso mundo
O mundo de António Manuel Venda, que nos habituámos a ir descobrindo como se fossemos exploradores em busca da última mina perdida da escrita, tem muito de um aroma que se foi perdendo: o do Portugal profundo. Daquele que se vislumbra nas cercanias de Monchique, que mostra um país perdido e que procura um cais de onde pode partir em busca de novas descobertas. Este seu novo romance é uma forma de o autor seguir a sua própria rota dos descobrimentos. Seguindo a carta de um velho livreiro de Évora, que tem interesse numa personagem que o próprio autor descreveu num romance de há alguns anos, autor e personagens redescobrem-se; voltam a iluminar-se referências relacionadas com a escrita e, também, acabamos sempre por encontrar pessoas e locais que fazem parte do imaginário de Venda, entre a cidade e o país rural, entre a auto-estrada e as outras que iludem as vias verdes. Há nestas páginas, muitas vezes, essa deliciosa sensação de prazer, de reconforto, com um país que vai desaparecendo quase sem darmos por isso. Ali cruzam-se também vidas: «O meu filho cuida melhor das propriedades, e eu cuido melhor dos meus livros. E com a livraria realizei um sonho. Acompanho tudo, vivo, como dizer… Vivo a vida dos livros… Mas é um trabalho duro, mais do que aquilo que eu esperava.» Vidas que se encontram neste livro que se vai entranhando no nosso olhar, no nosso pensamento, como um secreto prazer que se instala e nos faz olhar com toda a atenção para o mundo que nos cerca. Venda consegue transmitir-nos neste livro um secreto sentimento: o do prazer de ver com calma as personagens e os locais. Algo que a velocidade nos fez perder ao longo dos últimos tempos. Afinal, o que poderia acontecer se, como diz o livreiro Sapinho Júnior, «uma personagem que sai de um livro e então começa a entrar noutros livros?!». Desafio para a ciência e para a literatura; se isso acontecesse, mostraria como este livro é um sinal do destino.
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Manuel Nunes, Blogue «Leques Agitados» (http://lequesagitados.blogspot.com/), 09.08.07
Imaginem um romance em que o autor empírico é o narrador, um escritor que mora num monte ali para os lados de Montemor-o-Novo, e que, por imperativos profissionais, passa o tempo a percorrer o país do seu local de residência para a sua terra de origem – Monchique, onde é autarca – e para outros sítios, como Lisboa e Santarém. A história anda à volta dos livros e de uma personagem muito especial de uma das suas obras (o romance «O Medo Longe de Ti»), personagem essa que, por um insondável mistério, salta de romance para romance e deixa um pobre livreiro de Évora – o senhor Sapinho Júnior – no limiar de uma grave crise de nervos. Depois, há uns escritores de papelão – uns respeitáveis, outros nem por isso – que atravancam a livraria do tal senhor de Évora. Um desses escritores, por sinal uma escritora, talvez a menos respeitável de todos, é vandalizada por via de um inestético bigode que alguém desenha no seu perfeito rosto. E fala-se de Gabriel García Márquez, Lídia Jorge, Camilo José Cela, Dinis Machado, Mario Vargas Llosa, José Cardoso Pires, Ondjaki e tantos outros. Um produtivo diálogo com a literatura e com a magia dos livros. Não deve ser por acaso que a tal personagem que está sempre a mudar de romance se chama justamente «mágico velhinho». Grande livro, meus senhores!
.ores!.
José Vilhena Mesquita, Apresentação em Monchique, 29.09.07
Aquilo que verdadeiramente entra no livro de António Manuel Venda
A primeira questão que se sobrepôs à leitura deste livro de António Manuel Venda foi precisamente a mais elementar, isto é, a de saber se efectivamente estava, ou não, perante um romance na verdadeira acepção da palavra, e do teórico conceito que lhe é inerente. O trago de dúvida com que fiquei no final da sua leitura obriga-me a definir os termos e os conceitos em que me exprimo. Um pouco à laia de Voltaire, urge pois aclarar os conceitos com que nos expressamos para que a sintonia das palavras não se disperse na confusão ou no calor da discussão.
Comecemos por definir a palavra «romance», para perceber sem mais delongas aquilo que traduz o seu conceito. A palavra, na sua nudez original, deriva do étimo latino romanice, do qual descende romanicus, que significa, em latim popular, uma narrativa, verdadeira ou imaginária, escrita em prosa ou verso, repartida por cenas, quadros ou capítulos, pejados de pormenores e longas descrições, cuja acção se desenrola através de várias personagens, de entre as quais só algumas assumem o protagonismo de se tornarem no centro da diegese. Isto no que concerne à palavra.
Porém, no que incumbe ao conceito de romance, importa dizer que só muito tardiamente é que o mesmo foi equacionado, numa perspectiva mais simples, mais sintetizada, mas não menos abrangente. Com efeito, só no declinar do século XVIII é que se definiu o romance como «uma narração em prosa de uma acção fictícia que tem por quadro a pintura de costumes». Dito desta forma não há nada mais simples, nem menos directo. E sendo assim, a obra «O que Entra nos Livros», de António Manuel Venda, integra-se inquestionavelmente, tanto no conceito como na palavra, na correcta designação de romance. Não unicamente de «costumes» – porque isso está fora de moda e qualquer dia nem existe –, mas de um maravilhoso fantástico, a que mais adiante me referirei com relativa acuidade.
Ao longo da História da Literatura Portuguesa publicaram-se diversos tipos de romances: históricos (Romantismo); sócio-moralistas (Naturalismo), ético-científicos (Realismo); político-revolucionários (Neorealismo); anti-dogmáticos e universalistas (Modernismo) psico-surrealistas (Pós-Modernismo); e outros que nem sei até como qualificá-los. Em todos estes modelos de criação ficcionista o que está em causa são os costumes das sociedades humanas no tempo e no espaço, numa espécie de simbiose, ou de intercepção espacial, entre a História e a Sociologia.
Ora acontece que o romance «O que Entra nos Livros», afasta-se de todos estes modelos classificativos, ou de todas os movimentos literários que acabei de enunciar sumariamente, muito embora o seu discurso narrativo se integre naquilo a que chamo o «modernismo milenarista». Isto é, na tentativa de criação artística através do pictorismo ficcionista da palavra, ascendendo a patamares supra-fantasistas, que rapidamente se transformam numa diegese fantástica, surreal, imateral e anti-ascética. Nada de novo, diria, se com isso não se cortassem definitiva e diametralmente os cânones da ficção dominante. O paradigma romancista, na sua feição soberana e imperante, preocupa-se com a construção de grandes quadros sociais, ao longo dos quais o autor vai fazendo uma descrição evolutiva dos interesses percepcionais e dos seus consequentes jogos de poder, assim como das virtudes e dos defeitos dos protagonistas, dos assimilados ou dos desintegrados numa sociedade enquistada nos defeituosos costumes do individualismo social. O romancista torna-se assim num crítico e num psicanalista da sociedade, no que isso tem de mais contraditório e de paradoxal, usando geralmente o amor e as relações laborais nas suas conexões e correspondências com as intrigas que vulcanizam os diversos poderes em que se reparte a vida real. O romancista é, em suma, um ficcionista do real.
No caso presente, a natural bonomia de António Manuel Venda, a sua candura bucólica, a sua inocência e pureza de carácter, insuflada de um certo torpor algarviista, influenciou decisivamente a sua inspiração e consequente criação artístico-literária, visivelmente enraizada nos telúricos vergéis da sua saudável Monchique, onde os romanos procuravam a cura para os seus achaques através do princípio natural da água, ou seja, o termalismo, modernamente designado por SPA, sigla romana que se traduz por «salute per aqua».
Neste livro, como aliás, em quase todos os outros da sua lavra, a terra-natal, o Algarve e a peneplanície alentejana, que lhe serve hoje de residência e de ninho conjugal, estão presentes com uma insistente acuidade, e até por vezes com inusitado protagonismo. O mesmo acontece com as reminiscências da sua infância e juventude, aqui e ali afloradas, num contrastante quadro dos sentidos, entre a fresca e verdejante montanha e as estivais praias do barlavento algarvio. Essa enriquecedora vivência, a que certamente se conjugaria uma marcante e muito atenta convivência social, serviu-lhe, e provavelmente ainda lhe servirá, para povoar de vida os seus romances, os seus contos e as suas novelas, cujo inquestionável talento, e insofismável sucesso literário, enobrece hoje não só a literatura portuguesa como, muito particularmente, o seu e nosso Algarve.
Relativamente ao estilo, à concepção narrativa deste livro, direi que impera na estruturalização dos seus capítulos uma insistente, e consistente, preocupação realista da envolvente descritiva, através do recurso ao enquadramento paisagístico em que decorre a diegese. A descrição de aves e animais que abundam no montado onde reside, dos pormenores sobre a flora alentejana e sobre o parco coberto florestal, a contrastar com a sua Monchique originária, é uma constante neste romance. A descrição das estradas por onde circula, com as alarmantes brigadas de trânsito (que por insistência descritiva acabam por o interceptar quase no final do livro), assim como as pessoas que na berma da estrada, nos largos e jardins das aldeias, aguardam serenamente o decurso dos seus dias, numa entediante monotonia. Apesar de aqui e ali depararmos com uma certa acintosidade crítica, contra a ditadura salazarista, mas também contra os políticos actuais, a que não escapam os autarcas, o certo é que a acção do romance decorre de forma lenta e parcimoniosa, à imagem do clima mental, mas também socioeconómico, que se vive nas terras sulinas. Mesmo com essa aparente lentidão, desse torpor ao Sul, a minha atenção de leitor (ainda que pouco disponível para a ficção literária) não se conseguiu despegar das páginas que se iam sucedendo, envoltas no crescente mistério da fantasia que paira por detrás das palavras.
O autor, na sua prodigiosa imaginação, assume-se, quase despudoradamente, como personagem principal, como confidente do leitor, e por vezes como um cavaqueador tertuliano, do qual não nos podemos divorciar. Num estilo pós-moderno, António Manuel Venda encanta-nos com a fantasia dum «mágico velhinho», figura levemente fantástica, duma bonomia desarmante e quase infantil, muito invulgar por causa dessa inofensividade, contrária à agressividade das personagens surreais que caracterizam este género de literatura.
Acima de tudo, o livro está primorosamente bem escrito, escorreito na linguagem e absolutamente correcto na estrutura frásica e na concordância gramatical, em que por vezes o autor se coloca, diegeticamente, com pruridos de perfeccionista. Numa visão sintética e desconstrucionista da concepção narrativa, eu diria que este livro é uma espécie de alegoria aos Livros e ao Mundo da Escrita, cuja acção se desenvolve num quase monólogo entre o autor e o leitor. Numa estratégia modelarmente concebida, a atenção do leitor é constante e abruptamente interrompida pela desconcertante forma como se encerram os capítulos, deixando-lhe um trago de insaciável curiosidade. Desse estratagema narrativo resulta uma inebriante concentração do leitor na sucessão diegética das páginas, que o leva sempre por diante na progressiva sucessão dos capítulos.
Falando, ainda mais concretamente, deste livro, parece-me que, em primeiro lugar, dele ressalta a surpresa do título: «O que Entra nos Livros». Assim, de repente, apetece-me dizer que o que está dentro deste livro mais não é do que a própria alma do autor, consubstanciada no seu talento e na sua genialidade, eufemisticamente identificada na figura do «mágico velhinho». Acima de tudo, o que está dentro deste livro é a rara e mui singular capacidade imaginativo-fantasista de António Manuel Venda.
Curiosamente, ao contrário do que seria normal e expectável, este livro não se distancia dos anteriores; bem pelo contrário, engasta-se no romance que o antecede, intitulado «O Medo Longe de Ti». Não é a sua continuação, como se de uma saga se tratasse, mas antes de um romance de anamnese, em que uma das figuras secundárias e quase inócuas do livro anterior passou, ou saltou qual malabarista, para o livro seguinte, como se tivesse vida própria, ou, talvez mais concretamente, como se já existisse antes de ser inventado. É a figura do «mágico velhinho», uma criatura inventada pelo autor, inocentemente inspirado em «Branca de Neve e os Sete Anões», obviamente uma reminiscência da infância, modelado pela sua imaginação no aspecto físico do Dunga, mas com o carácter e os trejeitos do Zangado.
Tudo aparentemente infantil e inocente, mas que no decurso da narrativa se transforma numa misteriosa errância psicanalítica, pejada duma envolvência fantasista e quase fastasmática, geradora dum clima enigmático, nebuloso e enleante. O misterioso e insondável «mágico velhinho» vagueava pelos livros, saindo de um e entrando noutro, numa irrequieta odisseia entre autores de diversos quadrantes culturais, aparentemente desconexa e sem qualquer critério, mas que, ao fim e ao cabo, revelava ou estava intimamente relacionada com as preferências literárias do próprio António Manuel Venda. Em certo sentido, o «mágico velhinho» constitui a personificação do espírito errante e irreverente do próprio autor.
Mas o mais desconcertante neste romance é o facto de ser apenas constituído por duas personagens, mais essa omnisciente figura do «mágico velhinho». Em boa verdade, na intercepção dos diferentes estratos narrativos, estão apenas duas personagens, o Autor, especificamente identificado, e o Livreiro, um tal Sapinho Júnior, proprietário duma livraria em Évora, que numa simples carta indagava o «caríssimo escritor» sobre os verdadeiros traços fisionómicos do «mágico velhinho». Esta missiva funciona como rastilho para despoletar todo o romance em torno de uma absoluta ficção: o «mágico velhinho», esse pressuposto duende ou gnomo, híbrida figura inspirada no Dunga, um anão do humor infantil, que talvez por humildade do autor nunca poderia transformar-se num Mago Merlin da Corte do Rei Artur.
O certo é que em torno do «mágico velhinho» nasce, cresce e se desenvolve um belo romance, uma apaixonante história de fantasia e de mistério, que absorve e confunde a atenção do leitor, transformando-se numa espécie de romance policial, sem violência, sem sangue e sem criminosos.
Perante tudo isto, coloca-se-me, porém, e a priori, esta pertinente questão: terão os livros vida própria, e, por isso, a faculdade de gerarem descendência? Terão as personagens de ficção a possibilidade de se tornarem reais e de se independentizarem do berço/ livro em que nasceram? Lendo atentamente «O que Entra nos Livros» somos levados a crer que sim, os livros reproduzem-se e as personagens podem fugir deles para virem connosco passear por entre as nossas vidas.

«O Medo Longe de Ti»

(Romance, Temas e Debates, 2003)

Resumo do livro
(texto da editora, publicado na contracapa do livro)
Tudo se passou há dezoito anos, talvez dezanove. Perante a insistência dos pais, um rapaz aceitou frequentar um curso de alguns meses na Alemanha. Partiu da sua floresta do Sul com a ferida insuportável de uma traição recente e os seus fantasmas - bruxas, mágicos, pistoleiros e outras criaturas às quais ele procurava dar cor nas histórias bizarras que entretanto se pusera a escrever. Ao chegar à cidade de plástico - metáfora de um país demasiado arrumado e rígido, onde até os animais pareciam contratados para ocuparem determinados lugares na floresta -, teve a certeza de que não ficaria ali muito tempo. Mas enganou-se: logo no primeiro dia conheceu o sorriso de Catarina, apaixonou-se por ela e soube que esse amor seria para sempre.
Mesmo sendo correspondido, o medo de alguma vez vir a estar longe de Catarina invadiu-o e acabou por dominá-lo. E esse medo poderoso e avassalador acabou por assustá-la a ela...
Ainda hoje ele não sabe se Catarina voltou ao curso depois de um fim-de-semana em que se ausentou da cidade. Mas agora que se tornou um conhecido autor de livros juvenis, encontra surpreendido o seu rosto incomparável entre as pessoas que assistem a um encontro de escritores no qual participa. Será mais uma das suas irreprimíveis fantasias, ou Catarina voltou, sem ter envelhecido um único dia em todos estes anos?
Num romance em que o narrador se debate permanentemente entre a realidade que o cerca e a própria imaginação, António Manuel Venda oferece-nos uma história de amor contemporânea numa admirável Europa nova em que a juventude é uma preciosa mais-valia em todos os tipos de relações.


O início do livro
Há dezoito anos, talvez dezanove, fugi. Quase sem dar por isso, dia após dia, fui-me habituando a ter-te apenas na imaginação, às vezes até a ser capaz de sentir o cheiro a flores silvestres da tua presença ou de responder ao teu sorriso dos pequenos traços no rosto. Depois de abandonar a Universität, acabei por me ver de novo envolvido nas minhas histórias, sempre com bruxas em redor, com gnomos, com pistoleiros, com mágicos, até com animais que falavam. E nem todos apareceram como meus amigos. Nunca escrevi sobre ti, por mais forte que fosse a sensação de que estavas perto, mesmo que apenas num lugar da minha imaginação. E se agora o faço, passados todos estes anos, não é porque tenha vencido uma barreira imensa, é pela revelação que acabo de ter. Quero que saibas que nem por um dia esqueci o tempo que passámos juntos, que nem por um dia deixei de arrepender-me de não ter lutado para que esse tempo continuasse, e que nunca hei-de perdoar-me por não ter esperado até que descesse o último passageiro do comboio-ladrão. Naquela manhã, há dezoito ou dezanove anos...
Não, nunca escrevi sobre ti, nunca, durante todo este tempo. Acabei foi por usar o teu nome em muitas das histórias. Contos, romances, quantas vezes o teu nome tomou o corpo de uma personagem... Sem que fosse uma das feias, das más, das loucas, enfim, sem que fosse mais uma a arrastar-se de página para página. Não, o teu nome só para uma mulher muito bonita, quase como tu, ou até para uma flor, também bonita quase como tu. Nem que para isso fosse preciso arranjar para cada história uma personagem de última hora, imprevista, deslocada, até deslocada, no meio de tantas desgraças. O teu nome, sempre o teu nome... Por mais que quisesse evitar, até pelos reparos constantes da crítica – que tantas vezes se tem aventurado em artigos de fundo sobre a insistência no mesmo nome –, eu usei-o mesmo, todo cheio de certezas e alheio ao que iam dizendo, quase como se o mundo que realmente importava fosse o da minha imaginação.
(...)


Textos de opinião sobre o livro

Miguel Real, Jornal de Letras, 29.10.03
Puro amor
(…)
«O Medo Longe de Ti» assenta num estilo narrativo reiterativo, repetindo continuamente as mesmas ideias e as mesmas imagens num processo de martelamento mental do mesmo foco estético, isto é, do núcleo ideológico do romance: a descoberta e a perda de um puro amor, um amor tão grande e obsessivo que, como nos ensina Camilo Castelo Branco, se torna impossível devido à voracidade e intemperança de que é animado, um amor sentimentalmente maior do que o desejo físico e a harmonia familiar que podem proporcionar. Porém, este amor singular do narrador por Catarina, cuja temática não é física e carnal (sexual), não é social (o casamento), não é juvenil ou adolescente (o namoro, o flirt), não é um amor rompido (o divórcio), um amor que tudo engole (aulas, colegas, professores na universidade), narrado universalmente segundo os atributos do sentimento da paixão, torna-se uma metáfora de Portugal (a «floresta do Sul») no seu actual processo de racionalização e estandardização europeia (a «floresta das regras»). Deste modo, «O Medo Longe de Ti» deve ser lido em dois níveis diferenciados: primeiro, um nível social e histórico, o do confronto entre o imaginário da velha Europa, representado pelo narrador português (sem nome de personagem − identificado como escritor de «histórias macacas», indubitavelmente o narrador das histórias dos livros anteriores de AMV...) e pelo jovem escritor grego Yordos, e o racionalismo frio e metódico da Europa Central, representado pela «cidade de plástico» e pelo mecanismo burocrático dos professores «monstros» enviados pela Comissão Europeia; segundo, um nível individual e sentimental, o amor puro do narrador português por Catarina, alemã filha de emigrantes portugueses. Se é no primeiro nível que assenta o estofo histórico do romance, constituindo-lhe o envolvimento temporal e espacial, é no segundo que se manifesta a originalidade do tratamento do amor pelo autor, fazendo confluir no narrador português todo o soberbo imaginário algarvio dos seus textos anteriores, substituindo agora o particularismo do «lagarto das Cimalhas», do «Zé da Silva» que queria ser «pardal-de-asa-branca», do «Raposo do Besteiro», da «Luzia dos Engreneiros», do «Corvo Espanhol», do «Escalavardo Homenzinho», ..., personagens de «Até Acabar com o Diabo» – 1998 – e de «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» – 2000 – pelo universalizante imaginário medieval e mediterrâneo da velha Europa, constituído por gnomos, bruxas, centuriões romanos maus e pelo imaginário da literatura infantil da primeira metade do século XX, os «pistoleiros» do conto «À Espera de Brenda Mcflain», de «O Velho que Esperava por D. Sebastião» (1999). Como se constata, AMV, em «O Medo Longe de Ti», não o abandonando, ultrapassou o seu fundo algarvio, mesmo português, elevando a sua região natal a imagem universal das actuais contradições europeias. Centrando na mente do narrador todo o imaginário antropológico da velha Europa do Sul (e, lendo «O Medo Longe de Ti», como não relembrar as teses de Eduardo Lourenço em «Nós ou as Duas Europas»), AMV domesticou finalmente a sua pujante imaginação, superando o folclorismo pertinente aos seus livros anteriores, concentrando-o numa personagem única, justamente definida em função do conteúdo de maravilhoso da sua mente e da base histórica-antropológica da antiga Europa, em explícita contradição com os costumes, de «plástico», da nova Europa.
(…)

Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 31.10.03
Em busca das florestas do amor
O amor pode ser uma floresta de enganos ou de sonhos inexcedíveis. E é nela que, muitas vezes, vislumbramos a felicidade do passado ou nos perdemos para sempre. No novo livro de António Manuel Venda, a bússola que mostra onde fica a floresta do Norte, há sempre um espaço para as recordações da floresta do Sul. É nesta teia de metáforas que vive o narrador, um jovem que parte para a Alemanha, para um «programa de jovens líderes europeus para o futuro». É lá que encontra Catarina, a rapariga onde descobre a luz ao fundo do túnel das suas incertezas. Ela própria o cruzamento do sangue alemão com o português.
É também a diferença entre o mundo da certeza e o da incerteza que fascina Venda: «Naquela floresta cheia de regras, ainda que eu insistisse em lá voltar, não conseguia ver nada da minha floresta de Portugal, os campos, as serras, tudo ainda livre dos espartilhos do ordenamento. A minha floresta do Sul, onde os animais apareciam quando calhava, quando se lembravam, e não por obrigação, fossem dos bons, fossem dos maus, como os terríveis escorpiões pretos.» Mas o narrador, hoje um autor de livros juvenis, sente que o perfume de felicidade que então encontrou em Catarina se desvaneceu, como se tudo não tivesse passado de um encantamento. Mais tarde ele próprio procura destrinçar a verdade da fantasia, como se elas às vezes não estivessem tão ligadas, não fosse impossível separá-las.
É o fascínio do amor que contamina as páginas de «O Medo Longe de Ti», a lógica hipnótica que envolve os apaixonados: «Eu nunca tinha pensado na hipótese de vir a ser popular na Universität, mas fui-o por estar contigo. Éramos o primeiro par que surgia entre os novos, o primeiro de muitos, porque pares não haveriam de faltar durante o programa dos jovens, uniões e separações, sempre, até ao fim. Era o mais normal, todos sabiam. Mas nós não, nós não podíamos separar-nos. Só que... lembras-te da noite em que me disseste que tínhamos mesmo de parar? A noite da primeira festa na Universität, com um mês de programa... Só consegui dizer que ia esperar sempre por ti, que ia lutar sempre por ti. Tu não disseste nada, e eu afastei-me.» É este o labirinto do amor, o lugar de todos os desencontros. E é isso que António Manuel Venda descreve de forma única. A sua escrita contagia-nos, através de toda a simbologia que vai percorrendo as frases, como slow-motions de um filme cheio de pequenos pormenores de beleza.
Em «O Medo Longe de Ti» está presente toda a capacidade pictórica de António Manuel Venda percorrer os rios onde corre a realidade e a ficção, a memória e o sonho, algo sempre tão presente em toda a sua obra. Ele é um dos valores seguros da nova escrita portuguesa, num território onde a herança de um país sonhador choca com as duras realidades de grandes metrópoles onde há cada vez menos espaço para a fantasia. É aí que está a profunda beleza de «O Medo Longe de Ti», um livro que nos lembra um mundo que se vai estilhaçando sem aparentes remorsos. E nós com ele...

Isabel Lucas, Magazine Artes, 01.12.03
Paixão numa floresta do Norte
– António Manuel Venda deixou para trás os traços mais pícaros e bizarros das suas narrativas, mas mantém toda a capacidade de contar histórias que já lhe reconhecíamos em livros anteriores. «O Medo Longe de Ti» mostra que o autor é um nome digno de nota na nova geração de escritores.
«Há dezoito anos, talvez dezanove, fugi.» António Manuel Venda começa deste modo - anunciando a desistência de um amor -, o seu mais recente romance, «O Medo Longe de Ti». Sem o nonsense que marcava os seus livros anteriores, mais comedido no dosear da imaginação, que neste caso não o deixa perder o sentido do real – apesar de se anunciarem algumas tentações -, o escritor usa a mesma clareza de linguagem de sempre para narrar o arrependimento pelo abandono de uma paixão.
Na primeira pessoa, o narrador conta a ida para uma universidade da Alemanha onde, para agradar à família, se inscreve num «programa de jovens líderes europeus». Leva as saudades da sua floresta do Sul, sem regras, obediente a um encanto e a perigos originais, e a certeza de que não iria cumprir os planos que outros tinham traçado para ele. Haveria de regressar antes de tempo, no tempo que decidisse por si. Queria escrever. Era esse o seu projecto.
Na Alemanha, junto à Universität, encontra uma outra floresta, regrada, com outros monstros e fantasmas estranhos, uma floresta de «plástico». O desalento acelera-lhe a vontade do regresso. Só que apareceu Catarina e um sorriso. Assim, logo no dia da chegada, «... vi-te como a minha vida, toda a minha vida, levantei-me, aproximei-me da mesa e perguntei-te, lembras-te?, em inglês:/ – What's your name?/ E tu disseste, em português, para meu espanto:/ – Ah, o rapaz da gravata!»
Catarina falou-lhe e amou-o como ele a amava. Mas havia o medo de uma separação futura e foi esse medo que os afastou, que a assustou e que o fez fugir e procurar refúgio na floresta do Sul, a única onde julgava encontrar a panaceia para os seus temores e o esquecimento. Passaram os anos, o rapaz tornou-se escritor e nada sabe de Catarina, mas a imagem dela persegue-o, clara, inesquecível. Ele julga encontrá-la um dia, numa conferência em que participa.
Já antes, António Manuel Venda (n. Monchique, 1968) se revelara como um contador de histórias. Só que aqui, sem as doses de fantasia que povoavam, por exemplo, «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» (2000), essa capacidade fica mais evidente, são mais visíveis os preceitos desse discorrer de palavras que compõem um romance e um dos seus pressupostos: precisamente o de ser capaz de contar uma história. Em «O Medo Longe de Ti», esse clássico requisito cumpre-se.

Paulo Silva, http://www.citador.pt/, 03.02.04
«O Medo Longe de Ti» é um romance de amor puro, inocente, roçando o juvenil, em que a personagem principal relata, 19 anos depois, tudo aquilo que se passou, sempre arrepedendido de, em determinado momento, ter abandonado tudo em virtude dos seus medos e da sua insegurança. Com um universo de imaginação extremamente rico, medos, receios e ansiedades são retratados pela personagem no seu mundo de gnomos, bruxas e pistoleiros, bons e maus.(...)
Num ambiente de universidade, de preparação dos líderes do futuro, com um curso de alemão em que a professora resolve editar um livro com histórias escritas pelos seus alunos, temos um candidato a escritor que escreve, segundo ela, histórias «macacas», porque recheadas do seu imaginário juvenil.
Mais tarde, 19 anos depois, já escritor consagrado, irá ter um encontro. E esse encontro vale pelo livro todo, com um final sublime, inesperado não tanto pela forma mas sim pelo conteúdo, que quase nos deixa com uma lágrima ao canto do olho. Porque, afinal, a insegurança e os medos que todos sentimos são potenciados e absorvidos pelo universo que nós próprios criamos; e nem sempre este universo pode ser partilhado, por mais belo que possa ser.

Jorge Cunha, Diário de Aveiro (suplemento Clip), 25.03.04
Um romance a ler
«O Medo Longe de Ti» é uma história de amor narrada, toda ela, sob a forma de evocação de acontecimentos passados há dezoito ou dezanove anos, cujo protagonista é o próprio narrador, que entretanto se tornou num conhecido autor de livros juvenis. (...)
Com uma linguagem fluente e despretensiosa mas frequentemente muito expressiva, a história vai avançando através do entrecruzar constante de duas realidades: a história do amor do narrador por Catarina e uma outra realidade, criada pelo narrador, povoada pelas figuras da sua infância.
Referência para a construção narrativa: estamos perante um romance de narrador autodiegético, isto é, o narrador é simultaneamente a personagem principal; e, mais curioso, porque não muito frequente, também um narrador intradiegético, uma vez que contando a história (evocando-a) dirige-se sempre a uma personagem dessa mesma história, Catarina (convidando-a a acompanhá-lo nessa evocação).
Referência ainda para um outro aspecto: a crítica leve mas incisiva que transparece em diversas passagens, por exemplo, à standartização de um no qual a espontaneidade parece ter-se perdido (a «cidade de plástico» ou a «floresta das regras», onde os próprios animais parecem actuar de acordo com «um contrato com o município») ou a lugares comuns do discurso politicamente correcto («... a crença firme nos fundamentos de uma Europa unida que devia formar líderes com um sólido sentido europeu, capazes de defenderem valores como a solidariedade entre os povos, o desenvolvimento sustentável de todas as nações europeias e a liberdade num espaço de prosperidade e bem-estar cada vez mais homogéneo.»).
Sem dúvida, um romance a ler. Com atenção. E com prazer.

Manuela Barreto, Público (suplemento Mil Folhas), 27.03.04
- Romance sobre o amor e o desencontro de amor? Sobre o processo criativo? A infância? A Europa asséptica? O Norte e o Sul? O Medo Longe de Ti é sobre isso tudo.
Porque é de noite
e estamos ambos sós,
leitura e escritura,
criador e criatura,
na mesma inumerável voz.
in
«Os Livros», Manuel António Pina
Perder o Norte, guardar o Sul
No cenário de uma Alemanha ordenada, como se espera, reúne-se um grupo de estudantes europeus (num curso onde vão aprender a ser líderes) e entre os personagens surgem escritores putativos, Catarina-flor, uma mastodonta (feminino de «mastodonte»), maluca ainda por cima, uma futura agente literária (de uma persistência germânica), gnomos, bruxas, pistoleiros, mágicos e um tal Joe Dangerous que telefona directamente de 1890, de El Paso, para o protagonista - o narrador. Por aqui já se vê que a ironia (fina) não anda arredada de «O Medo Longe de Ti». Mas não apenas. O narrador, qual maestro, possui o poder de convocar figurinhas, solistas, muito pequenas (capazes de se esconderem num bolso de casaco), de se passear com elas, embora momentos haja em que se vê forçado a enxotá-las, pois podem ser benignas ou ter uma vontade danada de lhe fazer mal. Semelhante narrador tece então uma ponte entre a narrativa que ante nós se desenrola e o seu delírio íntimo e assim opera a junção entre uma história ancorada num espaço e tempo «reais» e o mundo da imaginação, conotado com o Sul e a sua floresta desordenada, manancial de perigos, mas também doce memória da infância, de onde provém o protagonista e aonde regressa no final. O Sul opõe-se pois ao Norte, à floresta alemã «das regras», onde até os bichos parecem obedecer aos ditames das autoridades municipais.
Muito bem escrito, num tom sempre próximo, convocando um universo próprio, «O Medo Longe de Ti», se desenvolve de modo algo monocórdico o seu tópico narrativo - o amor e as suas perplexidades -, não se fecha porém dentro dele e, além de alfinetadas à Europa organizadinha, com posto de comando em Bruxelas, sem alma nem jeito para as pessoas, aflora com ironia recentes evoluções no mundo laboral: «Havia mágicos reunidos à porta da Feira Popular, muitos, centenas deles, todos dispensados da fábrica das minha lágrimas. Os avanços tecnológicos... As leis laborais... Centenas de mágicos desocupados à porta da Feira Popular, apenas capazes de produzir lágrimas, mas sem lugar na fábrica onde agora vinte ou trinta davam conta do recado» (p. 169).
Interessante é o facto de a trama narrativa debater implicitamente o próprio processo criativo - neste caso, em literatura (há um caso de sucesso com um escritor que escreve em cima das árvores...) -, a par do tema da recepção do produto literário.
Se for verdade que é à infância que se vai buscar a inspiração, depois transfigurada, então também este tema é aqui tratado, ora sob a forma de motivos (a floresta do Sul, as caçadas aos grilos, os campos de trigo evocados nos cabelos da amada), ora nas tais figurinhas em destaque (gnomos, bruxas, mágicos, pistoleiros...) que possuem a enorme vantagem de encenar um teatro interior, que é como quem diz, alguém a falar de si para si e a abordar e esclarecer os medos e as dúvidas que a todos percorrem nesta experiência sem rascunho, a da própria vida. Dir-se-ia então que esta história é a prova acabada da teoria de que os personagens são partes clivadas de um autor. «Os mágicos... Sim, eram eles, todos unidos. Falavam uns com os outros, animavam-se, para que houvesse uma boa produção de lágrimas (...) Eu haveria de chorar até ao amanhecer (...) Tinha dormido no cimo da árvore (...) agarrado não sei como, talvez ajudado pelos meus instintos de criança» (p. 147). E o narrador assim desce (ou ascende) aos medos da infância e distribui aflições e pensamentos por vozes diversas.
O amor definitivo e acabado - não há a «mácula» das contingências do quotidiano, talvez porque não houve «tempo» para se aí chegar - é o sonho do narrador. Mas os seres que o vivem são frágeis, temerosos, o seu mundo interior é demasiado poderoso (pelo menos o daquele que melhor ficamos a conhecer) e esse amor está condenado a falhar. Porém, esse desejo mais largo do que será aqui humanamente realizável permanece o voto poético de quem narra: «Eu tinha alguns beijos teus nas estrelas do céu (...) Comecei a pensar em ti a afastares-te no comboio, a rapariga mais bonita do mundo, o meu amor a afastar-se, e o beijo da estrela pequenina sempre cravado numa das pontas, que quase não se via» (p. 133 e p. 136).
Para o final da história, que nos reserva uma surpresa mesmo no seu termo, há como que um apaziguamento enternecido: «O mágico velhinho, se estava na hora do sono, acordava logo, de mau humor. Deixava as sacas de serapilheira debaixo da minha secretária e ia buscar o realejo (...) Saía pela varanda, dizendo que ia dar uma volta até chegar a hora de tocar no Rossio (...) eu aproveitava para escrever, sem o ressonar do mágico velhinho a incomodar-me. Porque, quando ele ressonava, invariavelmente eu pegava nas chaves do carro, vestia o casaco (...)» (p. 169). O resto, pois para isso há que ler a história e saboreá-la. Deixar-se ir. Sem mais.

http://www.novoslivros.online.pt/,.01.06.04
Em honra do Sul
Há um pouco de tudo neste romance de António Manuel Venda, «o Medo Longe de Ti», já por demais elogiado.
Optando quase sempre por um registo de fantasia, em «O Medo Longe de Ti» António Manuel Venda fala de muitos assuntos, numa crítica pertinente e constante em que joga com realidades diversas − normalmente em oposição.
Um jovem português parte para a Alemanha para frequentar um curso. Uma partida quase imposta pelos pais, uma ida que ele sabe que será infrutífera. E assim nasce o desagrado por uma Europa organizada, cheia de regras, onde até os animais da floresta parecem representar um papel previamente definido, colocando-se nos locais escolhidos pela edilidade − exactamente o oposto do que acontece na sua floresta do Sul, desordenada e cheia de memórias de infância. O jovem pensava que ficaria pouco tempo nessa Europa das regras − e na sua solidão evoca bruxas, duendes, gnomos e pistoleiros, seres pequeninos que lhe cabem no bolso do casaco e ora são benignos ora lhe fazem mal e tem de mandá-los embora. Mas não previu que se apaixonaria pela bela Catarina.
Dezoito ou dezanove anos mais tarde, já um autor de livros infantis de sucesso, as suas personagens têm sempre um rosto − o rosto de Catarina... A mesma que encontra numa reunião de escritores?
Em «O Medo Longe de Ti», António Manuel Venda, que fez estudos superiores em Portugal e na Alemanha, não se afasta da realidade quotidiana. Não será por acaso que no estilo peculiar desta obra escreve, na página 169: «Havia mágicos reunidos à porta da Feira Popular, muitos, centenas deles, todos dispensados da fábrica das minhas lágrimas. Os avanços tecnológicos... As leis laborais... Centenas de mágicos desocupados à porta da Feira Popular, apenas capazes de produzir lágrimas, mas sem lugar na fábrica onde agora vinte ou trinta davam conta do recado.»

«Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações»

(Romance, Temas e Debates, 2000)

Início do livro
Às vezes, carinho, consigo ver-te no mar. As ondas costumam ser pequeninas, quase imperceptíveis, e por isso só te mexes quando os barcos se aproximam. Alguns, de certeza, são apenas a minha imaginação a fazer ondular o teu cabelo caído pelo rosto, mas há muitos que passam por ti como se nem sequer existisses. Esses são bem reais e a velha Luzia dos Engreneiros, do alto da rocha onde pesca ao fim da tarde, não se cansa de os amaldiçoar.
- Deve ser porque lhe espantam os peixes.
- Ou então, amigo, é mesmo por ruindade.
A velha Luzia dos Engreneiros já não tem nariz. E tudo porque um dia, ainda em rapariga, lhe explodiu o caldeirão dos preparos enquanto estava a tomar-lhes o cheiro. Só que isso nunca lhe deu grandes aborrecimentos.
- Ela nem se foi abaixo, até porque não era criatura para isso, amezinhou-se sozinha e ao fim de dois ou três meses apareceu com um nariz novo. Claro que se tratava de um nariz dos de carnaval, daqueles com uns óculos pretos por cima, mas como já uma vez ouvi dizer, minha boa e apreciada amiga, não se pode ter tudo nesta vida.
- É capaz. O mais certo é nem na outra vida se conseguir ter tudo.
Isso não se sabe bem, porque de lá, da outra vida, segundo por aí se diz, só voltam os fantasmas.
- Voltam os que voltam!
- Não, voltam todos. Os fantasmas voltam todos, por isso é que são fantasmas e têm aquelas particularidades absolutamente inegáveis, ainda que um pouco ambíguas, que depois os escritores aproveitam para os romances e que em alguns casos, mais cedo ou mais tarde, acabam nos ecrãs de cinema, ou pelo menos em séries de televisão. Se os cabrões não voltassem, está-se mesmo a ver, então é que não eram fantasmas.
- ...
- Não sei se me fiz compreender?
- Claramente, senhor professor, claramente. E neste ponto deixo a conversa.
(...)


Textos de opinião sobre o livro

Helena Barbas, Expresso, 18.11.00
Delírios
- O novo romance de António Manuel Venda: uma exuberância narrativa a não perder
Vai crescendo o rol dos livros publicados por António Manuel Venda. Estreou-se com uma série de contos em «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» (Pergaminho, 1996); seguiu-se-lhe uma novela, «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão» (Pergaminho, 1997), avança para o romance com «Até Acabar com o Diabo» (Pergaminho, 1998), regressa aos contos em «O Velho que Esperava por D. Sebastião» (Pergaminho, 1999) - o menos conseguido -, para retomar o romance no seu novo livro, «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações». Um sistemático delírio narrativo, histórias absurdas a um ritmo alucinante, cheias de humor e ironia, contadas numa linguagem rigorosa, que enfeitiçam o leitor.
Neste momento é já possível falar de um universo ficcional particular com características próprias, de um tipo de escrita pessoal, de um «estilo» (pese embora a palavra estar teoricamente fora de moda), regidos por uma invulgar maturidade, um profundo conhecimento e uma brilhante exploração da língua portuguesa.
Em «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», a nota predominante são as recorrências. Encontram-se aqui os mesmos espaços, a mesma geografia imaginária que preside aos textos anteriores - Alferce, S. Bartolomeu das Osgas -, agora substituídos por Foz de Zimbrais. O autor convencionou relacioná-los com Monchique, enquanto lugar da sua infância. Mas, na verdade, além de uma ou outra referência ao nome daquela urbe feitas pelas personagens nos textos, nunca nos oferece uma descrição específica que permita, exclusivamente, restringir qualquer das narrativas a um único espaço (nem mesmo quando das «experiências» da ficção científica). Porque Venda não faz descrições: os cenários são referidos pelas personagens, uma casa, uma árvore, um rio.
A recusa das descrições não se limita aos espaços, estendendo-se também às personagens. Estas são caracterizadas pelo nome-alcunha, pela profissão, pela linguagem. Surgem aqui igualmente agrestes, primárias nas suas preocupações: não têm vocabulário para exprimir uma angústia existencial mais erudita, pelo que retombam na magia, ou entram pelo absurdo adentro - todas têm as suas manias particulares, e há sempre uma com o desejo obtuso de voar:
«A princípio, meu amor, ninguém imaginava que o sonho de voar do Zé da Silva acabasse por levá-lo à morte. As pessoas, em Foz de Zimbrais, habituaram-se depressa à presença dele no Largo da Igreja, tanto que ao fim de uns tempos já só lhe ligavam quando era preciso explicar a situação aos turistas. Nem quando o Escalavardo Homenzinho apareceu morto na armadilha se convenceram de que ali também podia acontecer uma desgraça. Afinal, tratava-se dos dois casos das redondezas em que homens se julgavam bichos. Ou melhor, um tinha-se julgado bicho, o falecido Escalavardo Homenzinho, e o outro queria ser bicho, o Zé da Silva, candidato declarado a pardal-de-asa-branca. Para não falar, é claro, no Raposo do Besteiro, que era mesmo uma personalidade para ser colocada num outro patamar.
- O Raposo do Besteiro, aquele pobre diabo, diz por aí à boca cheia que é filho de mãe raposa e de pai desconhecido.» (pág. 35).
Por sua vez, aos animais vão ser atribuídas características e desejos humanos, como ao lagarto das Cimalhas, que do cimo de um pessegueiro assobia às lavadeiras:
«Por isso é que o lagarto das Cimalhas era um bicho triste. Apesar dos assobios quadrados, que davam a ideia exactamente do contrário.
- Oh Diabo!...
- Elas foram todas umas putas para o desgraçado! Se ele tivesse comido a mão a uma, como no outro dia fez ao Mau Serviço, da maneira airosa que toda a gente sabe, se ele tivesse tido boca para isso, amigo, até tinha sido muito bem feito.
O Mau Serviço esteve preso em caxias durante muitos anos, talvez uns cinco ou seis.» (pág. 15).
Assim se encadeiam as histórias, entre associações inesperadas, encaixes insólitos, memórias súbitas de interlocutores sempre sugeridos por um título, uma profissão. Um encadeamento que vai recuperar momentos e episódios dos livros anteriores, reescrevendo-os e reinscrevendo-os no novo contexto, atribuindo velhos sonhos a novos sonhadores.
Já a autocitação vai exibir-se e prolongar-se nas embirrações:
«- Há pessoas que não fazem mesmo falta nenhuma ao mundo, como uma vez li num livro de um rapazito de cá que tem a mania de que também é escritor.
- Uma perigosa embirração?!
- Exactamente. Mas como eu ia dizendo, ou ele escreveu, há pessoas que não fazem cá falta nenhuma...» (pág. 93).
Mas há outras, a escrever assim, que fazem.

Linda Santos Costa, Público, 02.12.00
Conversa na venda
É indiscutível que António Manuel Venda é senhor de um universo privado delimitado não tanto pelo espaço físico (o Algarve nas imediações da serra de Monchique, povoações com nomes imaginários a coexistirem com outras que têm existência nos mapas), que serve de cenário às suas histórias, mas pela natureza da situação narrativa (diálogos que se entrecruzam e criam um espaço narrativo em três planos) bem como pela matéria narrada (fantasmagorias atravessadas por referências à actualidade política e social portuguesa) que se deixa adivinhar no título do último romance - «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» - e tem antecedentes em anteriores contos e romances (as autocitações lembram isso mesmo).
«Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» configura uma estranha (insólita) situação narrativa em que um narrador na primeira pessoa se dirige amorosamente («meu amor», «querida», «carinho», «flor» - são algumas das expressões utilizadas) a alguém (mulher? sereia? peixe?), fornecendo uma espécie de mote que serve de enquadramento (sugestão, resumo, comentário) às vozes de narradores que irrompem não se sabe de onde e que, por sua vez, contam, comentam, discutem episódios mais ou menos fantásticos ocorridos na muito real povoação (mesmo se oriunda da geografia imaginária do autor) que dá pelo nome de Foz de Zimbrais. O leitor é colocado na situação de alguém que assiste, em directo, a conversas que são como que apanhados que retratam (ou fazem o «ponto da situação», como refere o autor em jeito de prefácio) o estado das coisas em Foz de Zimbrais.
Poder-se-ia pensar num programa de rádio que captasse as vozes de interlocutores que, numa venda, algures no Algarve, falassem animada e anonimamente (os nomes substituídos pelas funções - professor, doutora, engenheiro de porcos, jornalista, consultor independente, padre) sobre acontecimentos protagonizados por personagens bizarras (homens e animais a trocarem as respectivas naturezas e a confundirem-se), cujos sonhos e embirrações (manias) atiram para situações aventurosas e estranhas. E, de caminho, como quem não quer a coisa, lá vão tecendo comentários sobre a actualidade nacional, da política agrícola comum ao erro de contas do primeiro-ministro, da certificação da qualidade à declaração de Mário Soares de que não há pobres em Portugal, etc.. Tudo embrulhado em provérbios, palavrões e trocadilhos que são a fiel tradução da filosofia popular portuguesa. Uma conversa na venda do Macacácio cheia de cor local e nacional.
De certo modo, António Manuel Venda cria um mundo que é a versão culta (sem erros de gramática) de «A Conversa da Treta». E não faltará quem se ria e aprecie este humor inocente e amável.

Maria João Caetano, Diário de Notícias, 09.10.00
O país real através da escrita surreal
- «Nenhum Olhar», de José Luís Peixoto e «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», de António Manuel Venda, na Temas e Debates
José Luís Peixoto é alentejano de Galveias e tem 26 anos. António Manuel Venda é algarvio de Monchique e tem 32 anos. Mudaram-se para Lisboa para cumprir os estudos universitários e por aí ficaram, trazendo consigo as memórias e os cheiros das suas terras, histórias e personagens que não conseguem manter afastadas dos textos que escrevem, mesmo que o quisessem. Através da Temas e Debates, dão-nos agora a conhecer dois novos livros: «Nenhum Olhar», de Peixoto, é o seu segundo romance, depois de um percurso insistente na poesia, e é o seu primeiro livro que não tem escrito na capa «edição de autor». «Os Sonhos e Outras perigosas Embirrações», de Venda, é o seu primeiro título para a Temas e Debates, depois de quatro obras editadas pela Pergaminho, entre elogios da crítica e o desconhecimento do grande público.
Em comum estes dois autores têm mais do que uma viagem até à capital, muitos textos publicados no DN Jovem e o nome de uma editora. Ao contrário dos novos escritores «urbanos», que querem acompanhar o ritmo de vida nas cidades, nos livros de Peixoto e Venda a terra é castanha e o tempo passa devagar, as povoações são pequenas e as figuras que nelas habitam não estão agarradas a nenhum tempo. Têm nomes e vidas estranhas.
Como a velha Luzia dos Engreneiros, que já não tem nariz, - «tudo porque um dia, ainda em rapariga, lhe explodiu o caldeirão dos preparos enquanto estava a tomar-lhes o cheiro» e, agora, a velha usa um nariz de Carnaval, «daqueles com uns óculos pretos por cima». Ou os dois irmãos siameses, Elias e Moisés, «a mão direita de um e a mão esquerda do outro unidas pelo dedo mindinho», inseparáveis para sempre, como bonecos recortados numa fileira em papel. Assim apresentadas, até é difícil dizer que figuras pertencem a que romances, mas que não se iludam os futuros leitores destas obras, pois as escritas de Venda e Peixoto encarregam-se de distinguir o que o ambiente surrealista poderia tornar semelhante.
Uma feliz coincidência faz com que José Luís Peixoto e António Lobo Antunes apresentem no mesmo dia os seus novos livros. Não seria preciso dizê-lo, mas o autor de «Morreste-me» (editado no início do ano) lê Lobo Antunes com gosto, desde cedo. Terá aprendido com ele a dar voz às diferentes personagens e a diluir o discurso directo numa prosa que, o autor reconhece, caminha a passos largos para a poesia. «Não acredito em prosa poética, não sei o que isso é», afirma José Luís Peixoto na timidez da sua primeira entrevista. E, no entanto, escreve que «talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu, e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu».
Nota-se que trabalha exaustivamente cada frase, escolhendo minuciosamente as palavras, trocando-lhes a ordem, repetindo ideias como refrães ritmados. Fernando Pessoa, Ruy Belo e Herberto Helder são os seus poetas de eleição, na prosa escolhe «o incontornável» padre António Vieira, Faulkner e Dostoievski. Das leituras de juventude, de Raul Brandão a Soeiro Pereira Gomes, guardou o retrato cru do seu Alentejo, mas ficou ainda com mais vontade de ir para além dele e descobrir «o que é o Alentejo de cada alentejano». Alentejo é palavra que não se lê em «Nenhum Olhar» e, no entanto, ele está lá, em cada raio de sol e em cada casa caiada. Da mesma forma que, por mais voltas que dê, António Manuel Venda regressa sempre à sua serra algarvia. Desde «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», o primeiro título, publicado em 1996.
Depois deste, vieram «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão», «Até Acabar com o Diabo» e «O Velho que Esperava por D. Sebastião» - os títulos extensos transformaram-se quase na imagem de marca deste gestor que também escreve livros. Ou será que um escritor tem de trabalhar para ganhar a vida? Se pudesse, António Manuel Venda ficaria escondido na sua quinta, só a escrever, a escrever. Talvez um dia ganhe coragem e faça como Peixoto, que deixou de dar aulas de inglês para se dedicar só aos livros - aos que escreve e aos que lê para depois falar deles no DNA.
Para já, Venda concilia duas actividades e ainda tem tempo para, semanalmente, aconselhar os ouvintes de uma rádio algarvia a procurarem nas livrarias nomes como García Márquez, Manuel Rui, Agualusa ou Riço Direitinho. Licenciado em gestão de empresas e pós-graduado em marketing, é o primeiro a reconhecer que «como escritor, teria reprovado em marketing», fazendo as contas aos cerca de dois mil exemplares vendidos de cada uma das suas obras. Mas, contrariando todas as teses aprendidas, recusa-se a escrever o que os outros querem ler e só escreve o que lhe apetece.
Desta vez, apeteceu-lhe escrever uma história de fantasmas (em que nem sequer acredita), que deambulam por Foz de Zimbrais, onde há um homem que queria ser pássaro, um lagarto que se suicidou por amor e um mosquito teimoso. Embrenhado na fábula que ele próprio construiu, acabou por se perder no meio de tantas e tão estranhas personagens e precisou de muita concentração para se certificar de que tudo no livro fazia sentido. Dentro do nonsense.
António Manuel Venda e José Luís Peixoto já estão a escrever novos livros. Dizem que não conseguem parar, apesar dos números das vendas e das contas bancárias. «As modas passam», diz uma das personagens de Venda. É por acreditarem nisso que insistem em ser escritores.

Nuno Costa Santos, A Capital, 10.10.00
Elogios antes da festa
São hoje lançados no Lux dois livros da Temas e Debates: o primeiro romance de José Luís Peixoto e a quinta obra de António Manuel Venda. A Capital apresenta os autores.
Nunca se tinham encontrado. Nunca tinham tomado um copo ou um café juntos para falarem sobre literatura ou sobre a vida. Conheciam-se literariamente, através das personagens que, um dia, criaram numa qualquer madrugada. A Capital antecipou, pois, o primeiro encontro de ambos, que iria ter lugar hoje à tarde, no Lux, durante o lançamento dos livros que editaram recentemente pela Temas e Debates: «Os Sonhos e Outras Perigosa Embirrações» e «Nenhum Olhar».
Seria de estranhar se este encontro tivesse corrido mal. António Manuel Venda, autor do primeiro livro, e José Luís Peixoto, autor do segundo, têm percursos parecidos, escreveram para o DN Jovem e passaram por situações semelhantes na altura em que quiseram editar. Quer o primeiro, quer o segundo, enviaram originais das suas obras para editores que os recusaram e tiveram a «sorte» de, a dada altura, terem encontrado alguém que viu neles um talento a explorar. O premiado António Manuel Venda (por exemplo, recebeu, em 1990, o «Prémio de Literatura» da Secretaria de Estado da Cultura e da SPA e, em 1991, o «Prémio Revelação Inasset» do Centro Nacional de Cultura) só em 1996 é que encontrou o seu editor. «Ele foi excelente: telefonou-me logo a seguir a ter enviado o livro», disse. Após ter editado quatro títulos pela Pergaminho, Venda resolveu publicar a sua última obra pela Temas e Debates «por uma questão de divulgação».
José Luís Peixoto, que nasceu há 26 anos, em Portalegre, enviou o seu primeiro romance para algumas editoras, mas só encontrou verdadeiro eco na Temas e Debates. «Foram muito sinceros comigo», disse o autor, que, antes, já havia publicado «Morreste-me», um livro sobre a ausência de um pai que faleceu, escrito num tom quase confessional. «Morreste-me» chegou depois às mãos de alguns críticos, que normalmente não escrevem sobre estreias. O jovem escritor assistiu, então, à concretização do sonho de ser elogiado por um crítico exigente como Eduardo Prado Coelho. «Fico muito feliz com isso», confessou.
A última obra do autor dos contos de «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» é, segundo o próprio, «um pouco da história de um povo e de uma região, que reflecte sobre vários temas: desde questões especificamente rurais até à Internet». António Manuel Venda nasceu em Monchique, no Algarve, e nunca mais saiu de lá, pelo menos em espírito. Em todos os seus livros, faz uma visita aos lugares de infância. Desta vez, vai até um sítio chamado Foz de Zimbrais. É nesta aldeia que as personagens alimentam sonhos excêntricos, como o de voar, e infinitos anseios amorosos. Neste livro, um lagarto, sim, um lagarto suicida-se por amor.
«Nenhum olhar» é um romance assumidamente pessimista. Todo o livro é percorrido por uma ideia de decadência progressiva e irreversível. As personagens, que transportam nomes bíblicos, não conseguem evitar o «fim do mundo», onde já nada há: «Nem as certezas. Nem as sombras. Nem as cinzas (...)» E onde já não resta «Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar». «É verdade que não ponho de parte a ideia de que as coisas podem voltar a nascer, mas, caso isso aconteça, tudo volta a degradar-se», comentou José Luís Peixoto, que ainda acrescentou: «Esta não é a minha visão do mundo, é apenas a visão do mundo que quis dar a este romance».
Este encontro, que terminou com a troca de contactos, foi pontuado por vários momento de simpatia. António Manuel Venda salientou «o fôlego literário» do primeiro romance de José Luís Peixoto e este retribuiu prometendo enviar ao primeiro uma crítica literária positiva que escrevera para o DNA sobre um dos seus livros. Uma troca de elogios antes do lançamento das duas obras, que vai ter lugar hoje, às 18.30, no Lux.

João Paulo Guerra, Diário Económico, 13.10.00
Não sendo um caso singular, não é muito vulgar a relação tão íntima e exclusiva entre um autor e uma paisagem como a que se verifica entre a obra de António Manuel Venda e algumas aldeias imaginárias ou reais da serra algarvia. A identidade deste espaço físico, social e cultural é-nos dada na obra de António Manuel Venda não tanto pela descrição da paisagem, mas através de uma mitologia comum que povoa o imaginário de uma região demarcada na jovem literatura portuguesa pelo autor. A mesma paisagem e até certas personagens de António Manuel Venda percorrem os enredos dos seus contos e romances e podemos reencontrar algumas delas ao ler este livro. «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» é a história de muitas histórias, cruzadas segundo uma eficaz narração. Como escreve o autor, «trata-se de assuntos dignos de conversa». A história do lagarto das Cimalhas, que se matou por amor e cujo fantasma se integrou na normalidade possível. A história do Zé da Silva, que tinha a embirração de chegar a ser pássaro e que, como não tinha responsabilidades, podia ir para pardal-de-asa-branca à vontade, nem que fosse no outro mundo. E outras histórias. «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» é o quinto livro de um autor jovem, já premiado, que escreve como quem fala, para contar histórias de um universo inesperado e fantástico

Daniel Pina, Algarve Mais, 02.01.01)
(...)
Estamos perante um jovem escritor que consegue recriar de uma forma brilhante a literatura surrealista, com um gosto pelo insólito, pelo absurdo e pelo nonsense. Possui um estilo directo e espontâneo, corrente e enxuto, sem adjectivação, como se fosse uma fluente linguagem falada. O seu último livro, «Os Sonhos e Outras perigosas Embirrações», é uma obra alucinantemente dinâmica, onde o super-fantástico se mistura com o poético, o lirismo do sentimento, do romantismo, do amor e do carinho.

Dina Adão, Jornal do Algarve, 18.01.01
(...)
António Manuel venda-nos os olhos para depois nos colocar num mundo tão mágico quanto real, pleno de figuras pequeninas e bonitas que atravessam a trama com um toque de nonsense e humor. «Os Sonhos e Outras perigosas Embirrações» caminha através da áurea de um mundo rural traçado por um local imaginário na zona de Monchique: Foz de Zimbrais.

S/ indic. autor, Diário de Leiria, 27.10.00
O livro transporta-nos a Foz de Zimbrais, uma aldeia onde «a morte de um burro ou um desgosto amoroso podem ser grandes acontecimentos». Um livro onde o autor revela uma imaginação surpreendente, ou não fossem os seus personagens, por exemplo, um homem que anda a treinar-se para pardal-de-asa-branca, um lagarto que se suicidou por amor ou até uma bruxa sem nariz e que costuma pescar. Um livro cativante e divertido.


Apresentações

Texto de João Paulo Guerra, lido na apresentação do livro em Lisboa, 10.10.00
Quero salientar que a minha relação com a literatura é a de um simples leitor e por isso considerei o convite inesperado. Não sou crítico literário – embora seja muito crítico daquilo que leio, como de tudo. Como jornalista profissional tive, por vezes, a oportunidade de promover os livros, os escritores e a leitura, como uma fonte de conhecimento e de prazer. Em muitos anos de actividade jornalística, um dos trabalhos que me deu mais satisfação profissional e pessoal foi precisamente uma série de reportagens sobre livros, sobre a paisagem, o cenário – físico, social, cultural e humano –, de algumas obras da literatura portuguesa. Nessas reportagens parti à procura da realidade subjacente à ficção de um certo número de obras do último século da literatura portuguesa.
Isto passou-se entre 1994 e 1995, antes de António Manuel Venda publicar o primeiro livro, de contos – «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» –, em 1996. Se voltasse hoje a essas viagens com livros, certamente procuraria na serra algarvia, em Monchique, mais concretamente, o rasto da obra do autor.
Não sendo caso singular, não é muito vulgar esta relação tão íntima e tão fiel – exclusiva, por enquanto – entre um autor e uma paisagem. Toda a obra de António Manuel Venda, até hoje – o autor, felizmente também para os leitores, tem muitos e muitos anos de criação literária à sua frente –, os cinco livros já publicados, explora este espaço e esta figura que é o Oeste da serra algarvia, Monchique, em concreto, e algumas aldeias imaginárias da serra.
A identidade deste espaço físico, social e cultural é-nos dada na obra de António Manuel Venda, não tanto pela descrição das encostas de urzes, azevinhos, castanheiros e medronheiros que resvalam dos picos vulcânicos da serra, não por uma paisagem tatuada nas páginas dos seus livros, mas através de uma mitologia comum que povoa o imaginário das histórias populares. As histórias fantásticas que António Manuel Venda ouviu – «coisas que eu ouvi», disse o autor numa entrevista – e que conta nos seus contos e romances são um universo rural perfeitamente definido e localizado, de personagens e enredos fantásticos do maravilhoso popular, contado, recontado e recriado num ciclo sem fim, porque a imaginação é infinita.
«Do real nós já estamos fartos», diz António Manuel Venda noutra entrevista, acrescentando que por estar farto do real é que não é jornalista. Mas eu, que sou jornalista, posso garantir-lhe que hoje a realidade é cada vez mais inesperada e absurda.
Não considero absolutamente necessário afixar um rótulo ao autor, filiá-lo num grupo, numa escola, localizá-lo entre o mito e a realidade, o realismo ou o surrealismo. Mas parece-me indiscutível que António Manuel Venda, como os surrealistas, opõe a loucura e o sonho à existência real e objectiva das coisas. As suas personagens e histórias não obedecem aos cânones da coerência, antes viajam pela exploração dos sonhos e dos símbolos. No plano formal, a sua escrita é espontânea e fluída, tal como a dos surrealistas; e, como eles, segue o primado da imaginação na procura de um mundo alternativo ao quotidiano. Talvez o possamos situar nas proximidades do realismo fantástico dos escritores hispano-americanos. O autor, aliás, não esconde nem disfarça o seu fascínio por criadores do real maravilhoso que superaram a representação realista e naturalista do mundo.
A mesma paisagem e até certas personagens de António Manuel Venda percorrem os enredos dos seus contos e romances. Reencontrei, ao ler «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», S. Bartolomeu das Osgas, povoação vizinha da Foz de Zimbrais, e o Raposo do Besteiro, contador de histórias, locais e figura que conhecia de «Até Acabar com o Diabo», outra obra do autor. Mas, acima de tudo, reconheci muitos fantasmas. Afinal, e como afirma o autor, os escritores aproveitam-nos para os romances, por mais difícil que seja inscrever um fantasma onde quer que seja. A excepção que confirmará a regra são os cadernos eleitorais, de onde foi necessário, recentemente, varrer largos milhares de eleitores-fantasmas. Mas a verdade é que eleitores-fantasmas não é a mesma coisa que fantasmas de eleitores.
Contador de histórias que ouviu em Monchique, antes, durante e depois de rumar para Lisboa – onde se licenciou em gestão de empresas e pós-graduou em marketing e mercados financeiros –, António Manuel Venda cultiva a oralidade na sua escrita. A imaginação e a criatividade que acrescenta a essas histórias de província não lhes retira nada da sua origem de histórias faladas. A técnica narrativa e a estrutura de «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» constituem um magnífico exercício da arte de contar, de transmitir um enredo, de descrever uma personagem, desde os seus aspectos mais pitorescos e hilariantes, aparentemente superficiais, até ao mais íntimo do seu perfil psicológico.
«Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» – e fiquem desde já descansados porque as embirrações não duram eternamente, avisa o autor lá para o fim do livro – é a história de muitas histórias, cruzadas segundo uma eficaz narração. Como escreve o autor, trata-se de «assuntos dignos de conversa», à lareira em Foz de Zimbrais, onde faz frio no Inverno, na tasca do Macacácio, ou nas ruas da aldeia, para o caderno de apontamentos de um jornalista que está a preparar um trabalho sobre o contador de histórias. Ora cá está um jornalista farto do real.
A história do Lagarto das Cimalhas, que se matou por amor atirando-se de um penhasco abaixo, e cujo fantasma se integrou na normalidade possível. A história do Zé da Silva, que tinha a embirração de chegar a ser pássaro e que, como não tinha responsabilidades, podia ir para pardal-de-asa-branca à vontade, nem que fosse no outro mundo. A história da velha Luzia dos Engreneiros, velha bruxa sem nariz, ou melhor, com um nariz novo, dos de Carnaval. A história do Mau Serviço, um caiador que nasceu canhoto, veio a ficar maneta da mão esquerda e chegou a caiar um fantasma, o que lhe valeu uma entrevista para uma televisão e muitas para rádios. Certamente também a Rádio Monchique, mas talvez não no programa sobre agricultura que começa com um burro a zurrar. Talvez o burro tivesse sido objecto de negócio entre o Manel da Brica e o Empurra Burros. O que é certo é que os agricultores não se ofendem com o gingle da Rádio Monchique. São uma espécie em vias de extinção, por ordem de Bruxelas. Por exemplo, o Peitinho de Lagarto, que era cabreiro e se desfez dos animais a troco de uma indemnização por conta da Política Agrícola Comum e agora tem um negócio de cestos e canastras. A história do Bago de Milho, que vai à missa a Monchique porque nas outras igrejas os sermões não fazem eco capaz de espantar o bafo do Diabo. A história e as histórias do Raposo do Besteiro, que contava enredos que metiam sempre morcegos e é agora o cronista do terrível mosquito Siribano Loisinha, que faz o trânsito de Moçambique para a Península Ibérica, do pescoço de uma girafa para o gume da espada de um rei povoador. A história do Escalavardo Homenzinho, que não tinha ideia de se transformar pois pensava que já era um escalavardo. A história aflorada dos que ouvem histórias em Foz de Zimbrais, entre as quais uma história de amor com incursões pelo litoral. Em Foz de Zimbrais já deram pelo narrador e registaram que vai ver o mar, muitas vezes. Ainda acaba personagem de um enredo, talvez a personagem do homem que queria ser onda, ou navio.
O imaginário destas histórias de António Manuel Venda pode vir do fundo dos serões de província, das histórias ouvidas antes e contadas depois pela avó, em Monchique. Mas este é um universo imaginário e maravilhoso que permanece nos nossos tempos. Pelo romance passam já em forma de fantasmas o Estado Novo e a PIDE. E quando o Zé da Silva andava a tirar apontamentos dos saltinhos dos pardais, naquela ideia de vir a ser pássaro, andava Portugal a negociar outros voos, concretamente a entrada para a Comunidade Europeia.
«Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» é o quinto livro de um autor de 32 anos. Um autor premiado pelo Instituto Abel Salazar, pela Secretaria de Estado da Cultura, pela Sociedade Portuguesa de Autores, pela Câmara Municipal de Almada, pelo Centro Nacional de Cultura e pela Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses… que nunca descobriu maneira de lhe entregar o prémio. Um autor que escreve como quem fala, para contar histórias de um universo inesperado e fantástico.
Quero com tudo isto dizer que estas personagens, estas histórias, esta escrita constituem uma grande fonte de prazer. Haverá melhor recomendação?

Texto de António da Silva Carriço, lido na apresentação do livro em Monchique, 14.12.00
Uma leitura d’ «Os Sonhos...» do António Manuel Venda
O último livro do António Manuel Venda tem por título «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações».
Os críticos literários têm-se debruçado atentamente sobre a sua escrita e o jovem escritor (32 anos – 5 obras publicadas) tem vindo a alcançar um merecido êxito.
Porque muito já se disse, e sem a mínima pretensão a crítico, quero apenas usar do direito que me assiste de dar a minha opinião sobre o livro em causa. Por dois motivos: primeiro, pelo prazer que me dá partilhar, discutir até (se possível) as emoções da leitura; segundo, pela quase obrigação que se impõe de alguém de Monchique dar o seu parecer, dizendo de si, acerca de um escritor de Monchique. Estas duas razões bastam para agradecer-lhe o empenho que tem manifestado em levar o nome da nossa terra a muita gente que desconhece a sua existência. Empenho conseguido plenamente, pois os seus livros têm tornado Monchique num lugar mágico. (De tal forma que alguns dos seus leitores poderão duvidar que exista...). O chão que as suas fabulosas personagens pisam é o nosso. Esse Algarve profundo somos nós. Com as nossas histórias (e as dele), com os nossos costumes e vivências. Que ele preserva, recriando no presente um passado de espantos e projectando-os no futuro. Como raízes.
É muito pessoal, muito minha, a leitura que faço destes «Sonhos».
A capa... Reproduz um quadro de Amadeo de Souza-Cardoso (óleo s/ tela, c/ colagens) pertencente ao Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão, da Fundação Calouste Gulbenkian. É um dos trinta e sete trabalhos do pintor que, com imenso êxito, durante um ano, estiveram recentemente expostos ao público de Nova Iorque, Washington e Chicago. Deste quadro e por essa ocasião disse um crítico norte-americano (Alan Artner, no Chicago Tribune): «é uma das mais impressionantes telas da pintura modernista (...) constitui uma obra densa e fragmentada (...) criando uma frenética colcha de retalhos que não tem paralelo na arte do seu tempo».
Não sei se será demasiado pretensioso aplicar a parte final desta crítica ao livro a que a pintura serve de capa. Mas, com o devido respeito, atrevo-me a dizer que também o livro do António Manuel Venda é uma «obra densa» de delírios mágicos, «fragmentada» de sonhos, «frenética colcha de retalhos», em que «o frenesi é o delírio em continuidade» (conforme o definiu um médico do séc. XVIII).
O título... Revela uma das «embirrações» do autor, que tem sido uma constante em toda a sua obra: o sonho. Neste seu livro, mais do que em qualquer outro, os sonhos são sempre embirrações e as embirrações uma profunda necessidade de sonhar. Teimosamente. Eu sei o que isso é, porque também eu sofro dessa fome. Talvez de uma outra maneira, mais íntima, menos truculenta, mais idealista, mas sempre necessidade insaciável do sonho.
Abri o livro e li as primeiras linhas...
«Às vezes, carinho, consigo ver-te no mar. As ondas costumam ser pequeninas, quase imperceptíveis, e por isso só te mexes quando os barcos se aproximam. Alguns de certeza são apenas a minha imaginação a fazer ondular o teu cabelo caído pelo rosto, mas há muitos que passam por ti como se nem sequer existisses.»
Parei, admirado – mas este não é o António Manuel Venda que eu conheço... O que é isto? Talvez o fermento do sonho... E acabei o parágrafo.
«Esses são bem reais, e a velha Luzia dos Engreneiros, do alto da rocha onde pesca ao fim da tarde, não se cansa de os amaldiçoar.»
Agora, algumas das personagens dos retalhos mais coloridos desta manta cosida de onde a onde, com o fio de um misterioso novelo de amor:
A velha Luzia dos Engreneiros, bruxa que ficou sem nariz na explosão do caldeiro da alquimia, mas que voltou a tê-lo de papelão, com óculos de carnaval. Na vassoura voava fora do alcance da mão de qualquer um, fazia a vida negra ao Cabide (hortelão/ coveiro), aos guardas, a toda a gente, mas... pescava para dar de comer aos pássaros. Pág. 79...
«Foi o vento, se calhar, carinho, que sempre me empurrou para ti. O vento que eu vejo a fazer-te esvoaçar o cabelo e que às vezes dá lugar aos barcos da minha imaginação. Os barcos verdadeiros servem apenas para estragar os meus momentos na falésia. Porque em geral são traineiras que não se integram na minha ilusão, na minha interminável ilusão de ti.»
O Lagarto das Cimalhas e o seu fantasma – que dava assobios quadrados às lavadeiras e se suicidou por desengano amoroso. Convertido em fantasma, permaneceu mulherengo e perseguia as varredoras das ruas da freguesia. Pág. 31...
«Há mortos que mereciam ser estudados com algum detalhe, se houvesse uns subsídios do Estado ou mesmo das Comunidades, há mortos, dizia eu, que morreram sem sonhos e sem embirrações.»
O Mau Serviço – caiador que pintava de branco tudo o que lhe aparecia pela frente do pincel. Conseguiu marcar com uma lista branca o fantasma do lagarto, mas este vingou-se e comeu-lhe a mão esquerda. Só que o pobre do homem era canhoto... e com uma só mão, se pegava no balde, não podia pegar no pincel, e se pegava no pincel, não podia pegar no balde ou agarrar-se à escada. Pág. 19...
«Quando estou em Foz de Zimbrais, vou uma vez por outra cortar o cabelo a Monchique ou então a Portimão, junto do mar, onde te vejo. O mar, flor, onde às vezes me perco no teu olhar de mel desenhado na água e no som de búzio que não me canso de imaginar para a tua voz.»
O duvidoso fantasma do Perdido da Arrojela – enterrado (sim ou não?) no Cemitério de Monchique. Pág. 11...
«O caso do Perdido da Arrojela é muito confuso. E também mete uma certa pena. Já se falou em se arranjar uma reforma para o desgraçado, uma coisa qualquer de sobrevivência ou invalidez. Mas o presidente da Junta de Freguesia disse logo que isso era quase impossível de conseguir. E o presidente da Câmara de Monchique foi da mesma opinião. É muito difícil inscrever um fantasma no que quer que seja, ainda que se trate de um fantasma por engano.»
O Leonardo/ Leopardo – que era um desbocado. Uma vez a professora, por castigo, atou-lhe uma corda à volta da cabeça, com duas folhas de nespereira a fazerem de orelhas de burro. E o pobre implorava que voltassem a chamar-lhe Leopardo em vez de Burro. Mais tarde foi para carcereiro. Pág. 58...
«Em Monchique, carinho, o cinema acabou deve fazer mais de quarenta anos. Há pessoas em Foz de Zimbrais que ainda se lembram de ter lá ido ver alguns filmes, mas já não são muitas. O cinema ficava exactamente na mesma rua da cadeia e o carcereiro tinha o costume de fechar os olhos às saídas dos presos que lhe pagavam para irem assistir aos filmes.»
O Raposo do Besteiro – filho de uma raposa e de pai incógnito, contador de histórias (verdadeiras!!!). Uma vez caçou a Morcega Leôncia numa mina. Por não dar conta dela, acabou por matá-la. Mas a Morcega começou a aparecer-lhe em fantasma enrolado num pano branco de cozinha... Quando o Raposo foi julgado por dizer que ele próprio tinha afogado a namorada num tanque, houve grande reboliço em Monchique. Pág. 89...
«Na altura do julgamento do Raposo do Besteiro, a sala de audiências do Tribunal de Monchique não chegou para as encomendas. Tanto que muitos curiosos ficaram à porta para assistirem à vez, e outros encostaram escadas à parede, mesmo junto das janelas da sala de audiências. (...) Uma viúva que morava no primeiro andar mesmo em frente do tribunal vendeu mais de duzentos bilhetes, que davam direito a ir assistir das janelas dela durante cinco minutos cada. Tinha dos mais variados preços, conforme fosse para o interrogatório do Raposo do Besteiro, ou para a decisão do juiz, ou ainda para a parte do padre de Monchique, que também tinha sido chamado para testemunhar. (...) Mas as diferenças de preço que a viúva fixou para os bilhetes acabaram por não ter significado. E isso porque rapidamente apareceram quatro ou cinco candongueiros que inflacionaram tudo.
– Houve até um lavrador que deu uma vaca em troca de um bilhete.
– Não me diga vossemecê uma coisa dessas! Uma vaca?!
– Isso mesmo, uma vaca!
– Bem, se tivesse dado uma filha era pior.
– Sim, também é verdade.»
Depois, há o Cabrita, que morreu assado num forno onde dormia, os «oveiros» Zé dos Ovos e Zé Gemada e...
O Escalavardo Homenzinho – 1,40m de altura e que, por ter a mania de ser escalavardo, assaltava os galinheiros. Uma noite, caiu numa ratoeira que lhe armaram e ficou com a cabeça esborrachada. Foi encontrado com uma galinha morta entre os poucos dentes que tinha. Pág. 30...
«À minha passagem pela faculdade, querida, não devo dar uma grande importância. Porque estava longe de imaginar que no mundo existisse alguém cujo olhar prendesse o meu logo no primeiro segundo, durante uma batida do coração, ou em menos tempo que o esboçar de um sorriso.
– Agora não te deixo mais.»
No meio de tudo isto, a bruxa pontificava. E dava cabo da cabeça aos guardas. Pág. 42...
«– Como é que a velha Luzia dos Engreneiros nunca transformou nenhum guarda num burro, isso é que eu nunca hei-de perceber.
– Olhe, se calhar até era um bem de caridade aqui para a gente.
– O quê?! Um guarda a menos?!
– Não, um burro a mais.»
O Zé da Silva é a personagem-sonho, o homem que queria voar cada vez mais alto, no desejo de ser pássaro, mas um pássaro diferente dos outros – um pardal-de-asa-branca. Ele ia «cortar as penas» ao barbeiro e prendia ramos de palmeira aos braços, à cintura e atrás... e acabou «voando» da torre da igreja cá para baixo, onde ficou feito em nada. O olho esquerdo do Zé da Silva desapareceu na calçada e nunca mais foi visto...
«A princípio, meu amor, ninguém imaginava que o sonho de voar do Zé da Silva acabasse por levá-lo à morte.» (Pág. 35) «O Zé da Silva arranjou um sonho, um sonho só para ele.» (Pág. 50) «Eu não seria capaz de morrer pelo meu sonho, por ti, flor, pela simples razão de a morte me levar para longe, definitivamente para longe de ti. O Zé da Silva é um caso diferente, e tudo porque levou o sonho de voar dentro do próprio corpo.» (Pág. 75).
Pág. 190...
«Não sei se a velha Luzia dos Engreneiros dá pela minha presença, quando me deixo ficar horas e horas no alto da falésia a contemplar-te. Quem sabe, meu amor, aquilo que lhe vai na cabeça? Ou no coração, ou na alma, ou simplesmente nos olhos.
– Não desapareças agora!
– ...
– Não ligues a esta onda!»
«Delírios» é o título da crítica de Helena Barbas no Expresso. Dela retiro este parágrafo:
[O livro é] «Um sistemático delírio narrativo, histórias absurdas a um ritmo alucinante, cheias de humor e ironia, contadas numa linguagem rigorosa, que enfeitiçam o leitor.»
Para mim, estes delírios são o calor de uma febre criativa e a necessidade de refrescar e transvazar o turbilhão de visões dessa febre. O livro é um alucinante carrossel de figuras, de situações e fenómenos de extraordinária maravilha, que nos deixam tontos, nos desequilibram e se convertem no tal frenesi – num delírio em continuidade.
Quanto à escrita, o António Manuel Venda tem uma maneira de o fazer muito sua. Sempre lhe apreciei o estilo (chamemos-lhe assim) directo, espontâneo, corrente, enxuto, quase limpo de adjectivação, como se fosse uma fluente linguagem falada. Este livro marca uma viragem na sua escrita. Embora o delírio que lhe é próprio persista, os diálogos e a forma como introduz os interlocutores (umas vezes sem identificação, outras apenas com um vocativo) é inovadora, uma criação sua.
Interessantíssimo, também, o «salpico» de pinceladas coloridas e musicais, de lírica amorosa. Mas quem é este «amor», este «carinho», esta «querida» ou esta «flor»? No labirinto da escrita, o leitor o descobrirá...
Com todas estas características, ele consegue recriar entre nós, e explorar de maneira brilhante, a literatura surrealista.
A propósito, vale a pena lembrar o Grupo Surrealista de Lisboa (1947), com António Pedro, José-Augusto França, Alexandre O’Neil e Mário Cesariny, como os mais legítimos representantes de um surrealismo português, que consistiu «no recurso a uma técnica, no gosto do insólito, na preferência pela metáfora dinâmica e transfiguradora» e que são característica evidentes n’ «Os Sonhos...» do António Manuel Venda.
O movimento surrealistas foi uma corrente de pensamento que surgiu em França em 1916. Foi Apollinaire quem usou pela primeira vez este adjectivo para qualificar uma sua obra, com o significado de super-fantástico.
A palavra correcta em português é «super-realismo» ou «sobrerrealismo» igual a «para além do/ acima do/ distanciado do» realismo. Isto ajuda-nos a melhor entender a ideia.
Quanto à sua definição e essência, no «Manifesto do Surrealismo» (1924) André Breton define o surrealismo como «um mero automatismo psíquico, pelo qual nos propomos exprimir quer verbalmente, quer por escrito, quer de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensar, ditado do pensamento 'com a ausência de qualquer fiscalização exercida pela razão', fora de toda a preocupação estética ou moral».
No seu «Segundo Manifesto» (1930) Breton diz: «Tudo leva a crer que existe um ponto do espírito desde o qual 'a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessam de ser percebidos como contradições'. Ora, em vão se buscaria na actividade surrealista outro móbil que não seja a esperança de determinar este ponto.»
«O surrealismo é uma experiência da tomada de contacto, efectuada pessoalmente pelos seus próprios iniciadores, com 'uma profunda actividade que se manifesta principalmente nos sonhos', nos estados de sonambulismo, nos automatismos e transes.»
Já se escreveu que «cumpre considerar o surrealismo como uma das 'formas do impulso' que em todas as épocas e em todos os países 'animou os homens mais desejosos de se libertarem dos seus limites'». /os destaques das plicas são meus/
Debruçando-me sobre estes conceitos (com especial incidência nos desdtaques entre plicas) e pondo-os em paralelo com «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», parece-me deduzir que o António Manuel Venda se propôs escrever um livro aplicando a par e passo a teoria surrealista ou, o que é mais certo, que o livro se encaixa perfeitamente na essência do movimento surrealista. Por isso o defino como o renovador do surrealismo português.
E agora, voltemos, «em directo», ao livro. Pág. 127...
«O Mau Serviço deu entrevistas a jornais importantes, e também a uma televisão e a muitas estações de rádio. E tudo por causa de ter cometido a proeza de caiar um fantasma.
– O Mau Serviço sempre foi amigo de se gabar, de forma que, por esses dias, não perdeu a oportunidade de falar dele e do pincel que tinha passado pela lombeira do fantasma do Lagarto das Cimalhas.
Além disso, o Mau Serviço aproveitou para informar todo o país de que se a velha Luzia dos Engreneiros, que andava desaparecida nos últimos tempos, se atrevesse a aterrar em Foz de Zimbrais, se isso acontecesse, era capaz de a pôr branca como um boneco de neve. E a vassoura também.
– E a puta da vassoura também! Ou a vassoura da puta, ou melhor, a puta da vassoura daquela puta.
– O senhor modere as palavras, por favor.
– ...
– É que estamos em directo.»
Depois disto, porque estamos em directo, e as palavras são dele, autor, o leitor que o condene ou aplauda, conforme o seu impulso...