quinta-feira, 14 de junho de 2007

«Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade»

(Contos, Editora Pergaminho, 1996)

Início do conto que dá o título ao livro
Até que a morte o levasse, Pedro Aquilino nunca haveria de esquecer a noite em que o macaco clunâmbulo lhe serviu o licor de amoras silvestres. Por esses tempos, Monchique parecia caminhar para a perdição, depois de tudo o que acontecera a seguir ao aparecimento das rameiras francesas do negro Jean Pierre. Haviam chegado com a companhia petrolífera, atraídas pelo dinheiro que na certa começaria a abundar na região. E foram elas, mais do que a própria companhia, que em menos de nada fizeram a vila acordar do longo sono de indiferença em que caíra muito tempo antes. Tanto que o presidente da câmara, quando se deu conta do estado das coisas, maldisse a hora em que decidira autorizar a exploração de petróleo no largo da feira a troco de um cinema, dois hotéis e um estádio de futebol.
- Valha-nos Glória Garcia! - gritou ele nos paços do concelho.
E depois fechou-se no gabinete e nunca mais ninguém o viu.
(...)


Textos de opinião sobre o livro

Helena Barbas, Expresso, 11.01.97
O vício de contar histórias
- Um jovem autor estreia-se com um invulgar - e excelente - livros de contos
São caso raro, mas às vezes lá aparecem daquelas pessoas que gostam de contar histórias e sabem mesmo contá-las. Desbobinam-nas uma atrás das outras a um ritmo alucinante, nunca se repetindo e surpreendendo sempre com situações cada vez mais inesperadas, absurdas, hilariantes. António Manuel Venda tem esse dom, e a ele associa um profundo conhecimento da língua portuguesa, um cuidado extremo no seu uso. Deixa-nos expectantes, desejosos de ler a história seguinte, inquietos porque a última acabou. A ânsia de descobrir o que irá acontecer na próxima, mistura-se à pena de ter passado mais uma página a encaminhar-nos para o fim do livro. São os mais apregoados que vistos malefícios da literatura, que assim até corre o risco de criar habituação, de se transformar em vício. O leitor regressa ao estado infantil de ouvinte maravilhado, ou entra em adulta empatia com o sultão de Xerazade - pode também entender qual não terá sido a força de tão manhosa narradora.
Das dezasseis histórias de António Manuel Venda, duas passam-se em Lisboa. À excepção da última, de ficção científica e com viagens interplanetárias, as restantes decorrem pelos Algarves, nas cercanias de Monchique e numa época que tem todos os defeitos da presente. O primeiro conto, «A Bruxa do Bairro Alto de S. Roque», reporta-se a 1706, e trata de um caso fantástico de um auto-de-fé a ter lugar no Rossio: «O século ainda ia novo mas a vida, que às idades não parecia ligar muito, já andava outra vez agitada por Lisboa. Ele era milagres de Santo António dia sim dia não, ele era as pessoas a falarem do anjo que alguém tinha avistado no alto da torre da igreja de Nossa Senhora da Graça, ele era ainda outras criaturas, talvez mandadas por Deus (...) E o bispo inquisidor, enquanto tão grandes maravilhas eram relatadas, lá se ia entretendo a mandar queimar hereges e judeus, uns por coisas vistas, outros porque, bem vistas as coisas, não haveria no reino deles necessidade.» (p.13) Aqui vai brincando com a linguagem da época, para logo mudar de estilo nos contos seguintes, onde adopta um registo eminentemente popular, embora rico de vocabulário, tão duro e cru como as personagens que nos vai apresentando. São estas gente do povo, tendo alcunha por nome, com necessidades e emoções primárias, por tal vivendo com mais intensidade os dramas da vida e da morte. Insinuam-se Aquilino e Torga, Rodrigues Miguéis ou o mais recente José Riço Direitinho. Porém, à temática e circunstâncias regionalistas vai adicionar-se o mitológico e o fantástico, com animais que falam, monstros que se humanizam, plantas que matam e outras metamorfoses: «As Nereidas chegaram no dia seguinte, depois de uma longa e difícil jornada à boleia. E avisaram que a partir daí chamar-se-iam Oréades, já que passavam a ser ninfas de montanha. Foram morar para a casa de Felisberto Silvestre, que com elas tinha afinidades divinas. Um barco grego havia-as trazido até à Praia da Rocha, e esse tornara-se o seu poiso ao longo dos séculos. (...) Felisberto Silvestre Poseidon era primo de todas em grau infinito...» (p.30) - uma lógica narrativa que acaba por invocar os «Contos do Gin Tonic» de Mário-Henrique Leiria. Silvestre é «O Homem dos Tremores de Terra» que tornam colossalmente fértil a terra de Alferce... Sequência a sequência, as personagens secundárias vão-se transformando em principais, expulsando a sua antecessora, até que o círculo se fecha num regresso à primeira. E também os títulos cumprem uma particular função narrativa, chegando num dos casos a dar a chave da história, premeditadamente escamoteada no seu interior.
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Victor Mendanha, Correio da Manhã, 28.11.96
Um caso sério na nova literatura
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Descobri duas horas de deliciosa leitura e um caso sério na nova literatura portuguesa, chamado António Manuel Venda, que usa uma forma de se expressar, na escrita, de tal maneira pessoal e intransmissível que seria mais fácil falsificar um quadro de Salvador Dali do que assinar um livro seu com outro nome.
O estilo deste escritor, capaz de virar a página de uma época, caso não lhe falte o fôlego para outros cometimentos de igual qualidade, talvez se defina - já que todos gostamos de definições - numa receita composta por 30 por cento de surrealismo, 40 por cento de populismo e 30 por cento de puro génio, com poder descritivo na quantidade que baste.
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Filipa Melo, Visão, 12.12.96
Surpreendente, esta estreia. António Manuel Venda (...) concebeu «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» como um bestiário. A primeira edição, de mil exemplares, esgotou em poucos dias. O livro mereceu os prémios «Literatura na Universidade», do Instituto Abel Salazar, e «Revelação Inasset», do Centro Nacional de Cultura. Outra coisa não seria de esperar destes pequenos contos de bruxas violadoras, Manuéis cornudos, Oréades desleixadas, costureirinhas que tiram as medidas aos homens e não só ou macacos clunâmbulos que servem licor de amoras silvestres. Num estilo delicioso, Venda proporciona três horas de sequiosa leitura. De espantar e pedir mais.

José Gomes Bandeira, Jornal de Notícias, 03.01.97
Contos, bruxas e... prémios
«Até que a morte o levasse, Pedro Aquilino nunca haveria de esquecer a noite em que o macaco clunâmbulo lhe serviu o licor de amoras silvestres. Por esses tempos, Monchique parecia caminhar para a perdição, depois de tudo o que tinha acontecido a seguir ao aparecimento das rameiras francesas do negro Jean Pierre.»
É um pedaço de um dos contos deste livro de António Manuel Venda, de Monchique, uma das terras algarvias que aparecem nas suas histórias de bruxas, bruxedos, bichos estranhos e mulheres infiéis, que fazem tema para serões e tabernas lá no «extremo sul». António Manuel Venda tem um estilo ágil e imaginação - os seus contos prendem pelo ambiente insólito e pelo imaginário sedutor, o que não deixa de merecer relevo quando se trata de um autor muito jovem (nasceu em 1968). É já detentor de várias distinções: prémios «Revelação Inasset» (exactamente para este «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade»), «Literatura na Universidade», «Literatura e Desenvolvimento» e «Cidade de Almada».

Carla Maia de Almeida, Notícias Magazine, 19.01.97
O povo e o presidente da junta
«Muitos disseram que o homem já devia andar pelos dez metros, mas também houve os que chegaram a quinze e dezasseis e os que se ficaram pelos sete ou oito. E só quando alguém notou que ele tinha os cabelos chamuscados e que os fios de alta tensão que passavam junto ao portão principal estavam a arder é que as dúvidas ficaram esclarecidas.» Dezasseis contos de trato surreal e grotesca moralidade marcam a estreia de um jovem escritor de Monchique, António Manuel Venda, que com este livro ganhou o prémio «Revelação Inasset», do Centro Nacional de Cultura. Novas e velhas superstições, agoiros e bruxarias, mulheres insolentes e gente de má catadura, manias do bicho-homem e bichos com a mania de que são homens estão entre estas fantasias de inspiração regionalista. Um Algarve desconhecido espera por si.

Manuel Frias Martins, Vértice, 01.07.97
Destaque muito particular merece «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», de António Manuel Venda. Recorrendo ao imaginário rural e/ ou ao maravilhoso popular, este autor constrói histórias onde o humor e a violência se misturam enquanto representações da vida, tantas vezes cruel e brutal, de um Portugal interior. Localizando as suas histórias num Algarve serrano, António Manuel Venda protagoniza bem o que me parece constituir o modo de estar da geração que nesta altura ainda não atingiu os trinta anos de idade: pragmatismo das ideias, objectividade dos discursos, ironia das atitudes. A frase curta e objectiva, aliada a uma retórica frugal, sustenta um estilo de escrita seco, brusco e directo que reflecte exemplarmente aquele modo de estar.
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Appio Sottomayor, A Capital, 05.12.96
Um Algarve a fazer jus ao seu passado de lendas e encantamentos está bem patente no livro de contos agora lançado pela Pergaminho e da autoria de António Manuel Venda. Com o curioso título de «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade», a obra revela um autor jovem mas já detentor de uma invulgar maturidade de escrita, capaz de manusear a ironia com a mestria de um veterano. As histórias estranhas, em que se entrelaçam as infidelidades conjugais com os animais imaginários que tomam parte na vida activa das personagens, revelam, por um lado, um conhecimento de serões e tascas algarvias e, por outro, uma faceta renovada na literatura portuguesa.

Carla Maia de Almeida, Notícias Magazine, 27.04.97
«Quando o Presidente da República Visitou Monchique por mera Curiosidade» - Um título destes não é todos os dias...