(texto da editora, publicado na contracapa do livro)
Tudo se passou há dezoito anos, talvez dezanove. Perante a insistência dos pais, um rapaz aceitou frequentar um curso de alguns meses na Alemanha. Partiu da sua floresta do Sul com a ferida insuportável de uma traição recente e os seus fantasmas - bruxas, mágicos, pistoleiros e outras criaturas às quais ele procurava dar cor nas histórias bizarras que entretanto se pusera a escrever. Ao chegar à cidade de plástico - metáfora de um país demasiado arrumado e rígido, onde até os animais pareciam contratados para ocuparem determinados lugares na floresta -, teve a certeza de que não ficaria ali muito tempo. Mas enganou-se: logo no primeiro dia conheceu o sorriso de Catarina, apaixonou-se por ela e soube que esse amor seria para sempre.
Mesmo sendo correspondido, o medo de alguma vez vir a estar longe de Catarina invadiu-o e acabou por dominá-lo. E esse medo poderoso e avassalador acabou por assustá-la a ela...
Ainda hoje ele não sabe se Catarina voltou ao curso depois de um fim-de-semana em que se ausentou da cidade. Mas agora que se tornou um conhecido autor de livros juvenis, encontra surpreendido o seu rosto incomparável entre as pessoas que assistem a um encontro de escritores no qual participa. Será mais uma das suas irreprimíveis fantasias, ou Catarina voltou, sem ter envelhecido um único dia em todos estes anos?
Num romance em que o narrador se debate permanentemente entre a realidade que o cerca e a própria imaginação, António Manuel Venda oferece-nos uma história de amor contemporânea numa admirável Europa nova em que a juventude é uma preciosa mais-valia em todos os tipos de relações.
O início do livro
Há dezoito anos, talvez dezanove, fugi. Quase sem dar por isso, dia após dia, fui-me habituando a ter-te apenas na imaginação, às vezes até a ser capaz de sentir o cheiro a flores silvestres da tua presença ou de responder ao teu sorriso dos pequenos traços no rosto. Depois de abandonar a Universität, acabei por me ver de novo envolvido nas minhas histórias, sempre com bruxas em redor, com gnomos, com pistoleiros, com mágicos, até com animais que falavam. E nem todos apareceram como meus amigos. Nunca escrevi sobre ti, por mais forte que fosse a sensação de que estavas perto, mesmo que apenas num lugar da minha imaginação. E se agora o faço, passados todos estes anos, não é porque tenha vencido uma barreira imensa, é pela revelação que acabo de ter. Quero que saibas que nem por um dia esqueci o tempo que passámos juntos, que nem por um dia deixei de arrepender-me de não ter lutado para que esse tempo continuasse, e que nunca hei-de perdoar-me por não ter esperado até que descesse o último passageiro do comboio-ladrão. Naquela manhã, há dezoito ou dezanove anos...
Não, nunca escrevi sobre ti, nunca, durante todo este tempo. Acabei foi por usar o teu nome em muitas das histórias. Contos, romances, quantas vezes o teu nome tomou o corpo de uma personagem... Sem que fosse uma das feias, das más, das loucas, enfim, sem que fosse mais uma a arrastar-se de página para página. Não, o teu nome só para uma mulher muito bonita, quase como tu, ou até para uma flor, também bonita quase como tu. Nem que para isso fosse preciso arranjar para cada história uma personagem de última hora, imprevista, deslocada, até deslocada, no meio de tantas desgraças. O teu nome, sempre o teu nome... Por mais que quisesse evitar, até pelos reparos constantes da crítica – que tantas vezes se tem aventurado em artigos de fundo sobre a insistência no mesmo nome –, eu usei-o mesmo, todo cheio de certezas e alheio ao que iam dizendo, quase como se o mundo que realmente importava fosse o da minha imaginação.
(...)
Textos de opinião sobre o livro
Miguel Real, Jornal de Letras, 29.10.03
Puro amor
(…)
«O Medo Longe de Ti» assenta num estilo narrativo reiterativo, repetindo continuamente as mesmas ideias e as mesmas imagens num processo de martelamento mental do mesmo foco estético, isto é, do núcleo ideológico do romance: a descoberta e a perda de um puro amor, um amor tão grande e obsessivo que, como nos ensina Camilo Castelo Branco, se torna impossível devido à voracidade e intemperança de que é animado, um amor sentimentalmente maior do que o desejo físico e a harmonia familiar que podem proporcionar. Porém, este amor singular do narrador por Catarina, cuja temática não é física e carnal (sexual), não é social (o casamento), não é juvenil ou adolescente (o namoro, o flirt), não é um amor rompido (o divórcio), um amor que tudo engole (aulas, colegas, professores na universidade), narrado universalmente segundo os atributos do sentimento da paixão, torna-se uma metáfora de Portugal (a «floresta do Sul») no seu actual processo de racionalização e estandardização europeia (a «floresta das regras»). Deste modo, «O Medo Longe de Ti» deve ser lido em dois níveis diferenciados: primeiro, um nível social e histórico, o do confronto entre o imaginário da velha Europa, representado pelo narrador português (sem nome de personagem − identificado como escritor de «histórias macacas», indubitavelmente o narrador das histórias dos livros anteriores de AMV...) e pelo jovem escritor grego Yordos, e o racionalismo frio e metódico da Europa Central, representado pela «cidade de plástico» e pelo mecanismo burocrático dos professores «monstros» enviados pela Comissão Europeia; segundo, um nível individual e sentimental, o amor puro do narrador português por Catarina, alemã filha de emigrantes portugueses. Se é no primeiro nível que assenta o estofo histórico do romance, constituindo-lhe o envolvimento temporal e espacial, é no segundo que se manifesta a originalidade do tratamento do amor pelo autor, fazendo confluir no narrador português todo o soberbo imaginário algarvio dos seus textos anteriores, substituindo agora o particularismo do «lagarto das Cimalhas», do «Zé da Silva» que queria ser «pardal-de-asa-branca», do «Raposo do Besteiro», da «Luzia dos Engreneiros», do «Corvo Espanhol», do «Escalavardo Homenzinho», ..., personagens de «Até Acabar com o Diabo» – 1998 – e de «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» – 2000 – pelo universalizante imaginário medieval e mediterrâneo da velha Europa, constituído por gnomos, bruxas, centuriões romanos maus e pelo imaginário da literatura infantil da primeira metade do século XX, os «pistoleiros» do conto «À Espera de Brenda Mcflain», de «O Velho que Esperava por D. Sebastião» (1999). Como se constata, AMV, em «O Medo Longe de Ti», não o abandonando, ultrapassou o seu fundo algarvio, mesmo português, elevando a sua região natal a imagem universal das actuais contradições europeias. Centrando na mente do narrador todo o imaginário antropológico da velha Europa do Sul (e, lendo «O Medo Longe de Ti», como não relembrar as teses de Eduardo Lourenço em «Nós ou as Duas Europas»), AMV domesticou finalmente a sua pujante imaginação, superando o folclorismo pertinente aos seus livros anteriores, concentrando-o numa personagem única, justamente definida em função do conteúdo de maravilhoso da sua mente e da base histórica-antropológica da antiga Europa, em explícita contradição com os costumes, de «plástico», da nova Europa.
(…)
Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 31.10.03
Em busca das florestas do amor
O amor pode ser uma floresta de enganos ou de sonhos inexcedíveis. E é nela que, muitas vezes, vislumbramos a felicidade do passado ou nos perdemos para sempre. No novo livro de António Manuel Venda, a bússola que mostra onde fica a floresta do Norte, há sempre um espaço para as recordações da floresta do Sul. É nesta teia de metáforas que vive o narrador, um jovem que parte para a Alemanha, para um «programa de jovens líderes europeus para o futuro». É lá que encontra Catarina, a rapariga onde descobre a luz ao fundo do túnel das suas incertezas. Ela própria o cruzamento do sangue alemão com o português.
É também a diferença entre o mundo da certeza e o da incerteza que fascina Venda: «Naquela floresta cheia de regras, ainda que eu insistisse em lá voltar, não conseguia ver nada da minha floresta de Portugal, os campos, as serras, tudo ainda livre dos espartilhos do ordenamento. A minha floresta do Sul, onde os animais apareciam quando calhava, quando se lembravam, e não por obrigação, fossem dos bons, fossem dos maus, como os terríveis escorpiões pretos.» Mas o narrador, hoje um autor de livros juvenis, sente que o perfume de felicidade que então encontrou em Catarina se desvaneceu, como se tudo não tivesse passado de um encantamento. Mais tarde ele próprio procura destrinçar a verdade da fantasia, como se elas às vezes não estivessem tão ligadas, não fosse impossível separá-las.
É o fascínio do amor que contamina as páginas de «O Medo Longe de Ti», a lógica hipnótica que envolve os apaixonados: «Eu nunca tinha pensado na hipótese de vir a ser popular na Universität, mas fui-o por estar contigo. Éramos o primeiro par que surgia entre os novos, o primeiro de muitos, porque pares não haveriam de faltar durante o programa dos jovens, uniões e separações, sempre, até ao fim. Era o mais normal, todos sabiam. Mas nós não, nós não podíamos separar-nos. Só que... lembras-te da noite em que me disseste que tínhamos mesmo de parar? A noite da primeira festa na Universität, com um mês de programa... Só consegui dizer que ia esperar sempre por ti, que ia lutar sempre por ti. Tu não disseste nada, e eu afastei-me.» É este o labirinto do amor, o lugar de todos os desencontros. E é isso que António Manuel Venda descreve de forma única. A sua escrita contagia-nos, através de toda a simbologia que vai percorrendo as frases, como slow-motions de um filme cheio de pequenos pormenores de beleza.
Em «O Medo Longe de Ti» está presente toda a capacidade pictórica de António Manuel Venda percorrer os rios onde corre a realidade e a ficção, a memória e o sonho, algo sempre tão presente em toda a sua obra. Ele é um dos valores seguros da nova escrita portuguesa, num território onde a herança de um país sonhador choca com as duras realidades de grandes metrópoles onde há cada vez menos espaço para a fantasia. É aí que está a profunda beleza de «O Medo Longe de Ti», um livro que nos lembra um mundo que se vai estilhaçando sem aparentes remorsos. E nós com ele...
Isabel Lucas, Magazine Artes, 01.12.03
Paixão numa floresta do Norte
– António Manuel Venda deixou para trás os traços mais pícaros e bizarros das suas narrativas, mas mantém toda a capacidade de contar histórias que já lhe reconhecíamos em livros anteriores. «O Medo Longe de Ti» mostra que o autor é um nome digno de nota na nova geração de escritores.
«Há dezoito anos, talvez dezanove, fugi.» António Manuel Venda começa deste modo - anunciando a desistência de um amor -, o seu mais recente romance, «O Medo Longe de Ti». Sem o nonsense que marcava os seus livros anteriores, mais comedido no dosear da imaginação, que neste caso não o deixa perder o sentido do real – apesar de se anunciarem algumas tentações -, o escritor usa a mesma clareza de linguagem de sempre para narrar o arrependimento pelo abandono de uma paixão.
Na primeira pessoa, o narrador conta a ida para uma universidade da Alemanha onde, para agradar à família, se inscreve num «programa de jovens líderes europeus». Leva as saudades da sua floresta do Sul, sem regras, obediente a um encanto e a perigos originais, e a certeza de que não iria cumprir os planos que outros tinham traçado para ele. Haveria de regressar antes de tempo, no tempo que decidisse por si. Queria escrever. Era esse o seu projecto.
Na Alemanha, junto à Universität, encontra uma outra floresta, regrada, com outros monstros e fantasmas estranhos, uma floresta de «plástico». O desalento acelera-lhe a vontade do regresso. Só que apareceu Catarina e um sorriso. Assim, logo no dia da chegada, «... vi-te como a minha vida, toda a minha vida, levantei-me, aproximei-me da mesa e perguntei-te, lembras-te?, em inglês:/ – What's your name?/ E tu disseste, em português, para meu espanto:/ – Ah, o rapaz da gravata!»
Catarina falou-lhe e amou-o como ele a amava. Mas havia o medo de uma separação futura e foi esse medo que os afastou, que a assustou e que o fez fugir e procurar refúgio na floresta do Sul, a única onde julgava encontrar a panaceia para os seus temores e o esquecimento. Passaram os anos, o rapaz tornou-se escritor e nada sabe de Catarina, mas a imagem dela persegue-o, clara, inesquecível. Ele julga encontrá-la um dia, numa conferência em que participa.
Já antes, António Manuel Venda (n. Monchique, 1968) se revelara como um contador de histórias. Só que aqui, sem as doses de fantasia que povoavam, por exemplo, «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» (2000), essa capacidade fica mais evidente, são mais visíveis os preceitos desse discorrer de palavras que compõem um romance e um dos seus pressupostos: precisamente o de ser capaz de contar uma história. Em «O Medo Longe de Ti», esse clássico requisito cumpre-se.
Paulo Silva, http://www.citador.pt/, 03.02.04
«O Medo Longe de Ti» é um romance de amor puro, inocente, roçando o juvenil, em que a personagem principal relata, 19 anos depois, tudo aquilo que se passou, sempre arrepedendido de, em determinado momento, ter abandonado tudo em virtude dos seus medos e da sua insegurança. Com um universo de imaginação extremamente rico, medos, receios e ansiedades são retratados pela personagem no seu mundo de gnomos, bruxas e pistoleiros, bons e maus.(...)
Num ambiente de universidade, de preparação dos líderes do futuro, com um curso de alemão em que a professora resolve editar um livro com histórias escritas pelos seus alunos, temos um candidato a escritor que escreve, segundo ela, histórias «macacas», porque recheadas do seu imaginário juvenil.
Mais tarde, 19 anos depois, já escritor consagrado, irá ter um encontro. E esse encontro vale pelo livro todo, com um final sublime, inesperado não tanto pela forma mas sim pelo conteúdo, que quase nos deixa com uma lágrima ao canto do olho. Porque, afinal, a insegurança e os medos que todos sentimos são potenciados e absorvidos pelo universo que nós próprios criamos; e nem sempre este universo pode ser partilhado, por mais belo que possa ser.
Jorge Cunha, Diário de Aveiro (suplemento Clip), 25.03.04
Um romance a ler
«O Medo Longe de Ti» é uma história de amor narrada, toda ela, sob a forma de evocação de acontecimentos passados há dezoito ou dezanove anos, cujo protagonista é o próprio narrador, que entretanto se tornou num conhecido autor de livros juvenis. (...)
Com uma linguagem fluente e despretensiosa mas frequentemente muito expressiva, a história vai avançando através do entrecruzar constante de duas realidades: a história do amor do narrador por Catarina e uma outra realidade, criada pelo narrador, povoada pelas figuras da sua infância.
Referência para a construção narrativa: estamos perante um romance de narrador autodiegético, isto é, o narrador é simultaneamente a personagem principal; e, mais curioso, porque não muito frequente, também um narrador intradiegético, uma vez que contando a história (evocando-a) dirige-se sempre a uma personagem dessa mesma história, Catarina (convidando-a a acompanhá-lo nessa evocação).
Referência ainda para um outro aspecto: a crítica leve mas incisiva que transparece em diversas passagens, por exemplo, à standartização de um no qual a espontaneidade parece ter-se perdido (a «cidade de plástico» ou a «floresta das regras», onde os próprios animais parecem actuar de acordo com «um contrato com o município») ou a lugares comuns do discurso politicamente correcto («... a crença firme nos fundamentos de uma Europa unida que devia formar líderes com um sólido sentido europeu, capazes de defenderem valores como a solidariedade entre os povos, o desenvolvimento sustentável de todas as nações europeias e a liberdade num espaço de prosperidade e bem-estar cada vez mais homogéneo.»).
Sem dúvida, um romance a ler. Com atenção. E com prazer.
Manuela Barreto, Público (suplemento Mil Folhas), 27.03.04
- Romance sobre o amor e o desencontro de amor? Sobre o processo criativo? A infância? A Europa asséptica? O Norte e o Sul? O Medo Longe de Ti é sobre isso tudo.
Mesmo sendo correspondido, o medo de alguma vez vir a estar longe de Catarina invadiu-o e acabou por dominá-lo. E esse medo poderoso e avassalador acabou por assustá-la a ela...
Ainda hoje ele não sabe se Catarina voltou ao curso depois de um fim-de-semana em que se ausentou da cidade. Mas agora que se tornou um conhecido autor de livros juvenis, encontra surpreendido o seu rosto incomparável entre as pessoas que assistem a um encontro de escritores no qual participa. Será mais uma das suas irreprimíveis fantasias, ou Catarina voltou, sem ter envelhecido um único dia em todos estes anos?
Num romance em que o narrador se debate permanentemente entre a realidade que o cerca e a própria imaginação, António Manuel Venda oferece-nos uma história de amor contemporânea numa admirável Europa nova em que a juventude é uma preciosa mais-valia em todos os tipos de relações.
O início do livro
Há dezoito anos, talvez dezanove, fugi. Quase sem dar por isso, dia após dia, fui-me habituando a ter-te apenas na imaginação, às vezes até a ser capaz de sentir o cheiro a flores silvestres da tua presença ou de responder ao teu sorriso dos pequenos traços no rosto. Depois de abandonar a Universität, acabei por me ver de novo envolvido nas minhas histórias, sempre com bruxas em redor, com gnomos, com pistoleiros, com mágicos, até com animais que falavam. E nem todos apareceram como meus amigos. Nunca escrevi sobre ti, por mais forte que fosse a sensação de que estavas perto, mesmo que apenas num lugar da minha imaginação. E se agora o faço, passados todos estes anos, não é porque tenha vencido uma barreira imensa, é pela revelação que acabo de ter. Quero que saibas que nem por um dia esqueci o tempo que passámos juntos, que nem por um dia deixei de arrepender-me de não ter lutado para que esse tempo continuasse, e que nunca hei-de perdoar-me por não ter esperado até que descesse o último passageiro do comboio-ladrão. Naquela manhã, há dezoito ou dezanove anos...
Não, nunca escrevi sobre ti, nunca, durante todo este tempo. Acabei foi por usar o teu nome em muitas das histórias. Contos, romances, quantas vezes o teu nome tomou o corpo de uma personagem... Sem que fosse uma das feias, das más, das loucas, enfim, sem que fosse mais uma a arrastar-se de página para página. Não, o teu nome só para uma mulher muito bonita, quase como tu, ou até para uma flor, também bonita quase como tu. Nem que para isso fosse preciso arranjar para cada história uma personagem de última hora, imprevista, deslocada, até deslocada, no meio de tantas desgraças. O teu nome, sempre o teu nome... Por mais que quisesse evitar, até pelos reparos constantes da crítica – que tantas vezes se tem aventurado em artigos de fundo sobre a insistência no mesmo nome –, eu usei-o mesmo, todo cheio de certezas e alheio ao que iam dizendo, quase como se o mundo que realmente importava fosse o da minha imaginação.
(...)
Textos de opinião sobre o livro
Miguel Real, Jornal de Letras, 29.10.03
Puro amor
(…)
«O Medo Longe de Ti» assenta num estilo narrativo reiterativo, repetindo continuamente as mesmas ideias e as mesmas imagens num processo de martelamento mental do mesmo foco estético, isto é, do núcleo ideológico do romance: a descoberta e a perda de um puro amor, um amor tão grande e obsessivo que, como nos ensina Camilo Castelo Branco, se torna impossível devido à voracidade e intemperança de que é animado, um amor sentimentalmente maior do que o desejo físico e a harmonia familiar que podem proporcionar. Porém, este amor singular do narrador por Catarina, cuja temática não é física e carnal (sexual), não é social (o casamento), não é juvenil ou adolescente (o namoro, o flirt), não é um amor rompido (o divórcio), um amor que tudo engole (aulas, colegas, professores na universidade), narrado universalmente segundo os atributos do sentimento da paixão, torna-se uma metáfora de Portugal (a «floresta do Sul») no seu actual processo de racionalização e estandardização europeia (a «floresta das regras»). Deste modo, «O Medo Longe de Ti» deve ser lido em dois níveis diferenciados: primeiro, um nível social e histórico, o do confronto entre o imaginário da velha Europa, representado pelo narrador português (sem nome de personagem − identificado como escritor de «histórias macacas», indubitavelmente o narrador das histórias dos livros anteriores de AMV...) e pelo jovem escritor grego Yordos, e o racionalismo frio e metódico da Europa Central, representado pela «cidade de plástico» e pelo mecanismo burocrático dos professores «monstros» enviados pela Comissão Europeia; segundo, um nível individual e sentimental, o amor puro do narrador português por Catarina, alemã filha de emigrantes portugueses. Se é no primeiro nível que assenta o estofo histórico do romance, constituindo-lhe o envolvimento temporal e espacial, é no segundo que se manifesta a originalidade do tratamento do amor pelo autor, fazendo confluir no narrador português todo o soberbo imaginário algarvio dos seus textos anteriores, substituindo agora o particularismo do «lagarto das Cimalhas», do «Zé da Silva» que queria ser «pardal-de-asa-branca», do «Raposo do Besteiro», da «Luzia dos Engreneiros», do «Corvo Espanhol», do «Escalavardo Homenzinho», ..., personagens de «Até Acabar com o Diabo» – 1998 – e de «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» – 2000 – pelo universalizante imaginário medieval e mediterrâneo da velha Europa, constituído por gnomos, bruxas, centuriões romanos maus e pelo imaginário da literatura infantil da primeira metade do século XX, os «pistoleiros» do conto «À Espera de Brenda Mcflain», de «O Velho que Esperava por D. Sebastião» (1999). Como se constata, AMV, em «O Medo Longe de Ti», não o abandonando, ultrapassou o seu fundo algarvio, mesmo português, elevando a sua região natal a imagem universal das actuais contradições europeias. Centrando na mente do narrador todo o imaginário antropológico da velha Europa do Sul (e, lendo «O Medo Longe de Ti», como não relembrar as teses de Eduardo Lourenço em «Nós ou as Duas Europas»), AMV domesticou finalmente a sua pujante imaginação, superando o folclorismo pertinente aos seus livros anteriores, concentrando-o numa personagem única, justamente definida em função do conteúdo de maravilhoso da sua mente e da base histórica-antropológica da antiga Europa, em explícita contradição com os costumes, de «plástico», da nova Europa.
(…)
Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 31.10.03
Em busca das florestas do amor
O amor pode ser uma floresta de enganos ou de sonhos inexcedíveis. E é nela que, muitas vezes, vislumbramos a felicidade do passado ou nos perdemos para sempre. No novo livro de António Manuel Venda, a bússola que mostra onde fica a floresta do Norte, há sempre um espaço para as recordações da floresta do Sul. É nesta teia de metáforas que vive o narrador, um jovem que parte para a Alemanha, para um «programa de jovens líderes europeus para o futuro». É lá que encontra Catarina, a rapariga onde descobre a luz ao fundo do túnel das suas incertezas. Ela própria o cruzamento do sangue alemão com o português.
É também a diferença entre o mundo da certeza e o da incerteza que fascina Venda: «Naquela floresta cheia de regras, ainda que eu insistisse em lá voltar, não conseguia ver nada da minha floresta de Portugal, os campos, as serras, tudo ainda livre dos espartilhos do ordenamento. A minha floresta do Sul, onde os animais apareciam quando calhava, quando se lembravam, e não por obrigação, fossem dos bons, fossem dos maus, como os terríveis escorpiões pretos.» Mas o narrador, hoje um autor de livros juvenis, sente que o perfume de felicidade que então encontrou em Catarina se desvaneceu, como se tudo não tivesse passado de um encantamento. Mais tarde ele próprio procura destrinçar a verdade da fantasia, como se elas às vezes não estivessem tão ligadas, não fosse impossível separá-las.
É o fascínio do amor que contamina as páginas de «O Medo Longe de Ti», a lógica hipnótica que envolve os apaixonados: «Eu nunca tinha pensado na hipótese de vir a ser popular na Universität, mas fui-o por estar contigo. Éramos o primeiro par que surgia entre os novos, o primeiro de muitos, porque pares não haveriam de faltar durante o programa dos jovens, uniões e separações, sempre, até ao fim. Era o mais normal, todos sabiam. Mas nós não, nós não podíamos separar-nos. Só que... lembras-te da noite em que me disseste que tínhamos mesmo de parar? A noite da primeira festa na Universität, com um mês de programa... Só consegui dizer que ia esperar sempre por ti, que ia lutar sempre por ti. Tu não disseste nada, e eu afastei-me.» É este o labirinto do amor, o lugar de todos os desencontros. E é isso que António Manuel Venda descreve de forma única. A sua escrita contagia-nos, através de toda a simbologia que vai percorrendo as frases, como slow-motions de um filme cheio de pequenos pormenores de beleza.
Em «O Medo Longe de Ti» está presente toda a capacidade pictórica de António Manuel Venda percorrer os rios onde corre a realidade e a ficção, a memória e o sonho, algo sempre tão presente em toda a sua obra. Ele é um dos valores seguros da nova escrita portuguesa, num território onde a herança de um país sonhador choca com as duras realidades de grandes metrópoles onde há cada vez menos espaço para a fantasia. É aí que está a profunda beleza de «O Medo Longe de Ti», um livro que nos lembra um mundo que se vai estilhaçando sem aparentes remorsos. E nós com ele...
Isabel Lucas, Magazine Artes, 01.12.03
Paixão numa floresta do Norte
– António Manuel Venda deixou para trás os traços mais pícaros e bizarros das suas narrativas, mas mantém toda a capacidade de contar histórias que já lhe reconhecíamos em livros anteriores. «O Medo Longe de Ti» mostra que o autor é um nome digno de nota na nova geração de escritores.
«Há dezoito anos, talvez dezanove, fugi.» António Manuel Venda começa deste modo - anunciando a desistência de um amor -, o seu mais recente romance, «O Medo Longe de Ti». Sem o nonsense que marcava os seus livros anteriores, mais comedido no dosear da imaginação, que neste caso não o deixa perder o sentido do real – apesar de se anunciarem algumas tentações -, o escritor usa a mesma clareza de linguagem de sempre para narrar o arrependimento pelo abandono de uma paixão.
Na primeira pessoa, o narrador conta a ida para uma universidade da Alemanha onde, para agradar à família, se inscreve num «programa de jovens líderes europeus». Leva as saudades da sua floresta do Sul, sem regras, obediente a um encanto e a perigos originais, e a certeza de que não iria cumprir os planos que outros tinham traçado para ele. Haveria de regressar antes de tempo, no tempo que decidisse por si. Queria escrever. Era esse o seu projecto.
Na Alemanha, junto à Universität, encontra uma outra floresta, regrada, com outros monstros e fantasmas estranhos, uma floresta de «plástico». O desalento acelera-lhe a vontade do regresso. Só que apareceu Catarina e um sorriso. Assim, logo no dia da chegada, «... vi-te como a minha vida, toda a minha vida, levantei-me, aproximei-me da mesa e perguntei-te, lembras-te?, em inglês:/ – What's your name?/ E tu disseste, em português, para meu espanto:/ – Ah, o rapaz da gravata!»
Catarina falou-lhe e amou-o como ele a amava. Mas havia o medo de uma separação futura e foi esse medo que os afastou, que a assustou e que o fez fugir e procurar refúgio na floresta do Sul, a única onde julgava encontrar a panaceia para os seus temores e o esquecimento. Passaram os anos, o rapaz tornou-se escritor e nada sabe de Catarina, mas a imagem dela persegue-o, clara, inesquecível. Ele julga encontrá-la um dia, numa conferência em que participa.
Já antes, António Manuel Venda (n. Monchique, 1968) se revelara como um contador de histórias. Só que aqui, sem as doses de fantasia que povoavam, por exemplo, «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações» (2000), essa capacidade fica mais evidente, são mais visíveis os preceitos desse discorrer de palavras que compõem um romance e um dos seus pressupostos: precisamente o de ser capaz de contar uma história. Em «O Medo Longe de Ti», esse clássico requisito cumpre-se.
Paulo Silva, http://www.citador.pt/, 03.02.04
«O Medo Longe de Ti» é um romance de amor puro, inocente, roçando o juvenil, em que a personagem principal relata, 19 anos depois, tudo aquilo que se passou, sempre arrepedendido de, em determinado momento, ter abandonado tudo em virtude dos seus medos e da sua insegurança. Com um universo de imaginação extremamente rico, medos, receios e ansiedades são retratados pela personagem no seu mundo de gnomos, bruxas e pistoleiros, bons e maus.(...)
Num ambiente de universidade, de preparação dos líderes do futuro, com um curso de alemão em que a professora resolve editar um livro com histórias escritas pelos seus alunos, temos um candidato a escritor que escreve, segundo ela, histórias «macacas», porque recheadas do seu imaginário juvenil.
Mais tarde, 19 anos depois, já escritor consagrado, irá ter um encontro. E esse encontro vale pelo livro todo, com um final sublime, inesperado não tanto pela forma mas sim pelo conteúdo, que quase nos deixa com uma lágrima ao canto do olho. Porque, afinal, a insegurança e os medos que todos sentimos são potenciados e absorvidos pelo universo que nós próprios criamos; e nem sempre este universo pode ser partilhado, por mais belo que possa ser.
Jorge Cunha, Diário de Aveiro (suplemento Clip), 25.03.04
Um romance a ler
«O Medo Longe de Ti» é uma história de amor narrada, toda ela, sob a forma de evocação de acontecimentos passados há dezoito ou dezanove anos, cujo protagonista é o próprio narrador, que entretanto se tornou num conhecido autor de livros juvenis. (...)
Com uma linguagem fluente e despretensiosa mas frequentemente muito expressiva, a história vai avançando através do entrecruzar constante de duas realidades: a história do amor do narrador por Catarina e uma outra realidade, criada pelo narrador, povoada pelas figuras da sua infância.
Referência para a construção narrativa: estamos perante um romance de narrador autodiegético, isto é, o narrador é simultaneamente a personagem principal; e, mais curioso, porque não muito frequente, também um narrador intradiegético, uma vez que contando a história (evocando-a) dirige-se sempre a uma personagem dessa mesma história, Catarina (convidando-a a acompanhá-lo nessa evocação).
Referência ainda para um outro aspecto: a crítica leve mas incisiva que transparece em diversas passagens, por exemplo, à standartização de um no qual a espontaneidade parece ter-se perdido (a «cidade de plástico» ou a «floresta das regras», onde os próprios animais parecem actuar de acordo com «um contrato com o município») ou a lugares comuns do discurso politicamente correcto («... a crença firme nos fundamentos de uma Europa unida que devia formar líderes com um sólido sentido europeu, capazes de defenderem valores como a solidariedade entre os povos, o desenvolvimento sustentável de todas as nações europeias e a liberdade num espaço de prosperidade e bem-estar cada vez mais homogéneo.»).
Sem dúvida, um romance a ler. Com atenção. E com prazer.
Manuela Barreto, Público (suplemento Mil Folhas), 27.03.04
- Romance sobre o amor e o desencontro de amor? Sobre o processo criativo? A infância? A Europa asséptica? O Norte e o Sul? O Medo Longe de Ti é sobre isso tudo.
Porque é de noite
e estamos ambos sós,
leitura e escritura,
criador e criatura,
na mesma inumerável voz.
in «Os Livros», Manuel António Pina
e estamos ambos sós,
leitura e escritura,
criador e criatura,
na mesma inumerável voz.
in «Os Livros», Manuel António Pina
Perder o Norte, guardar o Sul
No cenário de uma Alemanha ordenada, como se espera, reúne-se um grupo de estudantes europeus (num curso onde vão aprender a ser líderes) e entre os personagens surgem escritores putativos, Catarina-flor, uma mastodonta (feminino de «mastodonte»), maluca ainda por cima, uma futura agente literária (de uma persistência germânica), gnomos, bruxas, pistoleiros, mágicos e um tal Joe Dangerous que telefona directamente de 1890, de El Paso, para o protagonista - o narrador. Por aqui já se vê que a ironia (fina) não anda arredada de «O Medo Longe de Ti». Mas não apenas. O narrador, qual maestro, possui o poder de convocar figurinhas, solistas, muito pequenas (capazes de se esconderem num bolso de casaco), de se passear com elas, embora momentos haja em que se vê forçado a enxotá-las, pois podem ser benignas ou ter uma vontade danada de lhe fazer mal. Semelhante narrador tece então uma ponte entre a narrativa que ante nós se desenrola e o seu delírio íntimo e assim opera a junção entre uma história ancorada num espaço e tempo «reais» e o mundo da imaginação, conotado com o Sul e a sua floresta desordenada, manancial de perigos, mas também doce memória da infância, de onde provém o protagonista e aonde regressa no final. O Sul opõe-se pois ao Norte, à floresta alemã «das regras», onde até os bichos parecem obedecer aos ditames das autoridades municipais.
Muito bem escrito, num tom sempre próximo, convocando um universo próprio, «O Medo Longe de Ti», se desenvolve de modo algo monocórdico o seu tópico narrativo - o amor e as suas perplexidades -, não se fecha porém dentro dele e, além de alfinetadas à Europa organizadinha, com posto de comando em Bruxelas, sem alma nem jeito para as pessoas, aflora com ironia recentes evoluções no mundo laboral: «Havia mágicos reunidos à porta da Feira Popular, muitos, centenas deles, todos dispensados da fábrica das minha lágrimas. Os avanços tecnológicos... As leis laborais... Centenas de mágicos desocupados à porta da Feira Popular, apenas capazes de produzir lágrimas, mas sem lugar na fábrica onde agora vinte ou trinta davam conta do recado» (p. 169).
Interessante é o facto de a trama narrativa debater implicitamente o próprio processo criativo - neste caso, em literatura (há um caso de sucesso com um escritor que escreve em cima das árvores...) -, a par do tema da recepção do produto literário.
Se for verdade que é à infância que se vai buscar a inspiração, depois transfigurada, então também este tema é aqui tratado, ora sob a forma de motivos (a floresta do Sul, as caçadas aos grilos, os campos de trigo evocados nos cabelos da amada), ora nas tais figurinhas em destaque (gnomos, bruxas, mágicos, pistoleiros...) que possuem a enorme vantagem de encenar um teatro interior, que é como quem diz, alguém a falar de si para si e a abordar e esclarecer os medos e as dúvidas que a todos percorrem nesta experiência sem rascunho, a da própria vida. Dir-se-ia então que esta história é a prova acabada da teoria de que os personagens são partes clivadas de um autor. «Os mágicos... Sim, eram eles, todos unidos. Falavam uns com os outros, animavam-se, para que houvesse uma boa produção de lágrimas (...) Eu haveria de chorar até ao amanhecer (...) Tinha dormido no cimo da árvore (...) agarrado não sei como, talvez ajudado pelos meus instintos de criança» (p. 147). E o narrador assim desce (ou ascende) aos medos da infância e distribui aflições e pensamentos por vozes diversas.
O amor definitivo e acabado - não há a «mácula» das contingências do quotidiano, talvez porque não houve «tempo» para se aí chegar - é o sonho do narrador. Mas os seres que o vivem são frágeis, temerosos, o seu mundo interior é demasiado poderoso (pelo menos o daquele que melhor ficamos a conhecer) e esse amor está condenado a falhar. Porém, esse desejo mais largo do que será aqui humanamente realizável permanece o voto poético de quem narra: «Eu tinha alguns beijos teus nas estrelas do céu (...) Comecei a pensar em ti a afastares-te no comboio, a rapariga mais bonita do mundo, o meu amor a afastar-se, e o beijo da estrela pequenina sempre cravado numa das pontas, que quase não se via» (p. 133 e p. 136).
Para o final da história, que nos reserva uma surpresa mesmo no seu termo, há como que um apaziguamento enternecido: «O mágico velhinho, se estava na hora do sono, acordava logo, de mau humor. Deixava as sacas de serapilheira debaixo da minha secretária e ia buscar o realejo (...) Saía pela varanda, dizendo que ia dar uma volta até chegar a hora de tocar no Rossio (...) eu aproveitava para escrever, sem o ressonar do mágico velhinho a incomodar-me. Porque, quando ele ressonava, invariavelmente eu pegava nas chaves do carro, vestia o casaco (...)» (p. 169). O resto, pois para isso há que ler a história e saboreá-la. Deixar-se ir. Sem mais.
http://www.novoslivros.online.pt/,.01.06.04
Em honra do Sul
Há um pouco de tudo neste romance de António Manuel Venda, «o Medo Longe de Ti», já por demais elogiado.
Optando quase sempre por um registo de fantasia, em «O Medo Longe de Ti» António Manuel Venda fala de muitos assuntos, numa crítica pertinente e constante em que joga com realidades diversas − normalmente em oposição.
Um jovem português parte para a Alemanha para frequentar um curso. Uma partida quase imposta pelos pais, uma ida que ele sabe que será infrutífera. E assim nasce o desagrado por uma Europa organizada, cheia de regras, onde até os animais da floresta parecem representar um papel previamente definido, colocando-se nos locais escolhidos pela edilidade − exactamente o oposto do que acontece na sua floresta do Sul, desordenada e cheia de memórias de infância. O jovem pensava que ficaria pouco tempo nessa Europa das regras − e na sua solidão evoca bruxas, duendes, gnomos e pistoleiros, seres pequeninos que lhe cabem no bolso do casaco e ora são benignos ora lhe fazem mal e tem de mandá-los embora. Mas não previu que se apaixonaria pela bela Catarina.
Dezoito ou dezanove anos mais tarde, já um autor de livros infantis de sucesso, as suas personagens têm sempre um rosto − o rosto de Catarina... A mesma que encontra numa reunião de escritores?
Em «O Medo Longe de Ti», António Manuel Venda, que fez estudos superiores em Portugal e na Alemanha, não se afasta da realidade quotidiana. Não será por acaso que no estilo peculiar desta obra escreve, na página 169: «Havia mágicos reunidos à porta da Feira Popular, muitos, centenas deles, todos dispensados da fábrica das minhas lágrimas. Os avanços tecnológicos... As leis laborais... Centenas de mágicos desocupados à porta da Feira Popular, apenas capazes de produzir lágrimas, mas sem lugar na fábrica onde agora vinte ou trinta davam conta do recado.»
No cenário de uma Alemanha ordenada, como se espera, reúne-se um grupo de estudantes europeus (num curso onde vão aprender a ser líderes) e entre os personagens surgem escritores putativos, Catarina-flor, uma mastodonta (feminino de «mastodonte»), maluca ainda por cima, uma futura agente literária (de uma persistência germânica), gnomos, bruxas, pistoleiros, mágicos e um tal Joe Dangerous que telefona directamente de 1890, de El Paso, para o protagonista - o narrador. Por aqui já se vê que a ironia (fina) não anda arredada de «O Medo Longe de Ti». Mas não apenas. O narrador, qual maestro, possui o poder de convocar figurinhas, solistas, muito pequenas (capazes de se esconderem num bolso de casaco), de se passear com elas, embora momentos haja em que se vê forçado a enxotá-las, pois podem ser benignas ou ter uma vontade danada de lhe fazer mal. Semelhante narrador tece então uma ponte entre a narrativa que ante nós se desenrola e o seu delírio íntimo e assim opera a junção entre uma história ancorada num espaço e tempo «reais» e o mundo da imaginação, conotado com o Sul e a sua floresta desordenada, manancial de perigos, mas também doce memória da infância, de onde provém o protagonista e aonde regressa no final. O Sul opõe-se pois ao Norte, à floresta alemã «das regras», onde até os bichos parecem obedecer aos ditames das autoridades municipais.
Muito bem escrito, num tom sempre próximo, convocando um universo próprio, «O Medo Longe de Ti», se desenvolve de modo algo monocórdico o seu tópico narrativo - o amor e as suas perplexidades -, não se fecha porém dentro dele e, além de alfinetadas à Europa organizadinha, com posto de comando em Bruxelas, sem alma nem jeito para as pessoas, aflora com ironia recentes evoluções no mundo laboral: «Havia mágicos reunidos à porta da Feira Popular, muitos, centenas deles, todos dispensados da fábrica das minha lágrimas. Os avanços tecnológicos... As leis laborais... Centenas de mágicos desocupados à porta da Feira Popular, apenas capazes de produzir lágrimas, mas sem lugar na fábrica onde agora vinte ou trinta davam conta do recado» (p. 169).
Interessante é o facto de a trama narrativa debater implicitamente o próprio processo criativo - neste caso, em literatura (há um caso de sucesso com um escritor que escreve em cima das árvores...) -, a par do tema da recepção do produto literário.
Se for verdade que é à infância que se vai buscar a inspiração, depois transfigurada, então também este tema é aqui tratado, ora sob a forma de motivos (a floresta do Sul, as caçadas aos grilos, os campos de trigo evocados nos cabelos da amada), ora nas tais figurinhas em destaque (gnomos, bruxas, mágicos, pistoleiros...) que possuem a enorme vantagem de encenar um teatro interior, que é como quem diz, alguém a falar de si para si e a abordar e esclarecer os medos e as dúvidas que a todos percorrem nesta experiência sem rascunho, a da própria vida. Dir-se-ia então que esta história é a prova acabada da teoria de que os personagens são partes clivadas de um autor. «Os mágicos... Sim, eram eles, todos unidos. Falavam uns com os outros, animavam-se, para que houvesse uma boa produção de lágrimas (...) Eu haveria de chorar até ao amanhecer (...) Tinha dormido no cimo da árvore (...) agarrado não sei como, talvez ajudado pelos meus instintos de criança» (p. 147). E o narrador assim desce (ou ascende) aos medos da infância e distribui aflições e pensamentos por vozes diversas.
O amor definitivo e acabado - não há a «mácula» das contingências do quotidiano, talvez porque não houve «tempo» para se aí chegar - é o sonho do narrador. Mas os seres que o vivem são frágeis, temerosos, o seu mundo interior é demasiado poderoso (pelo menos o daquele que melhor ficamos a conhecer) e esse amor está condenado a falhar. Porém, esse desejo mais largo do que será aqui humanamente realizável permanece o voto poético de quem narra: «Eu tinha alguns beijos teus nas estrelas do céu (...) Comecei a pensar em ti a afastares-te no comboio, a rapariga mais bonita do mundo, o meu amor a afastar-se, e o beijo da estrela pequenina sempre cravado numa das pontas, que quase não se via» (p. 133 e p. 136).
Para o final da história, que nos reserva uma surpresa mesmo no seu termo, há como que um apaziguamento enternecido: «O mágico velhinho, se estava na hora do sono, acordava logo, de mau humor. Deixava as sacas de serapilheira debaixo da minha secretária e ia buscar o realejo (...) Saía pela varanda, dizendo que ia dar uma volta até chegar a hora de tocar no Rossio (...) eu aproveitava para escrever, sem o ressonar do mágico velhinho a incomodar-me. Porque, quando ele ressonava, invariavelmente eu pegava nas chaves do carro, vestia o casaco (...)» (p. 169). O resto, pois para isso há que ler a história e saboreá-la. Deixar-se ir. Sem mais.
http://www.novoslivros.online.pt/,.01.06.04
Em honra do Sul
Há um pouco de tudo neste romance de António Manuel Venda, «o Medo Longe de Ti», já por demais elogiado.
Optando quase sempre por um registo de fantasia, em «O Medo Longe de Ti» António Manuel Venda fala de muitos assuntos, numa crítica pertinente e constante em que joga com realidades diversas − normalmente em oposição.
Um jovem português parte para a Alemanha para frequentar um curso. Uma partida quase imposta pelos pais, uma ida que ele sabe que será infrutífera. E assim nasce o desagrado por uma Europa organizada, cheia de regras, onde até os animais da floresta parecem representar um papel previamente definido, colocando-se nos locais escolhidos pela edilidade − exactamente o oposto do que acontece na sua floresta do Sul, desordenada e cheia de memórias de infância. O jovem pensava que ficaria pouco tempo nessa Europa das regras − e na sua solidão evoca bruxas, duendes, gnomos e pistoleiros, seres pequeninos que lhe cabem no bolso do casaco e ora são benignos ora lhe fazem mal e tem de mandá-los embora. Mas não previu que se apaixonaria pela bela Catarina.
Dezoito ou dezanove anos mais tarde, já um autor de livros infantis de sucesso, as suas personagens têm sempre um rosto − o rosto de Catarina... A mesma que encontra numa reunião de escritores?
Em «O Medo Longe de Ti», António Manuel Venda, que fez estudos superiores em Portugal e na Alemanha, não se afasta da realidade quotidiana. Não será por acaso que no estilo peculiar desta obra escreve, na página 169: «Havia mágicos reunidos à porta da Feira Popular, muitos, centenas deles, todos dispensados da fábrica das minhas lágrimas. Os avanços tecnológicos... As leis laborais... Centenas de mágicos desocupados à porta da Feira Popular, apenas capazes de produzir lágrimas, mas sem lugar na fábrica onde agora vinte ou trinta davam conta do recado.»