quinta-feira, 14 de junho de 2007

«Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão»

(Novela, Editora Pergaminho, 1997)

Excerto do livro
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O Senhor S. Romão foi encontrado na Umbria, dentro de uma sementeira de favas. É um achado tão velho que até a mulher que o fez já morreu e agora ninguém se lembra de como se chamava ou de como era a sua figura. Diz o povo que a ela Deus se encarregou de lhe arranjar um lugar bom para a alma, e isso deve ser certo, porque os sacrifícios em favor do divino têm fama de vir a receber compensações depois da morte. O Céu, como apregoa o senhor abade Simão Agostinho, é só para quem o merece, e da mulher que um dia deu com o Senhor S. Romão pode-se dizer à confiança que está nessa conta.
Sempre tem sido muito falado o que ela passou com o santo, depois de o ter trazido aqui para a igreja do Alferce e de o ter colocado no altar maior. Ele desapareceu em menos de nada, e isso foi uma coisa que deixou toda a gente de boca aberta e sem saber o que pensar. Mas passado um tempo a mulher voltou a encontrá-lo nas ditas favas e tudo voltou ao princípio. De novo o levou para a igreja, de novo ele fugiu, e assim foi de novo em novo até que um belo dia assilhou. Da igreja não mais saíu, descansou a mulher, comeram-se as favas e o povo orou.
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Textos de opinião sobre o livro

Victor Mendanha, Correio da Manhã, 12.03.97
«Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão», cujo original recebeu o prémio «Cidade de Almada», em 1996, manifestam a exuberância da imaginação do autor, que o leva a passear, pela trela de uma narrativa fascinante e ao longo das 132 páginas da obra, personagens incríveis como a bruxa da Corte da Pomba, o cão falador ou o abade Simão Agostinho.
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Helena Barbas, Expresso, 22.03.97
Um romance às avessas
- Histórias bizarras ao encontro de uma tradição quase perdida
António Manuel Venda estreou-se - e assombrou-nos - com uma colectânea de contos insólitos, onde se misturava o regionalismo com o surrealismo, o realismo com o fantástico, a um ritmo alucinante e numa linguagem primorosamente trabalhada: «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade».
Regressa com um novo livro anunciado como romance, que se poderia chamar de novela, mas que se aproxima mais de uma estrutura de uma «never ending story» - o que nos deixa um pouco perplexos. «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão» é constituído por capítulos e secções, vários episódios - contos? - onde o narrador nos fala das aventuras e desventuras vividas pelas várias personagens de uma mesma aldeia no início do século XX. Não há mais continuidade de umas para as outras do que aquela a que nos habituou no seu livro anterior. Daqui a estranheza de baptizar este texto como romance - curiosamente, recorda a opção feita pelo cinema («Vizinhos») na adaptação dos contos de («A catedral») Carver: pôr as personagens a residirem todas num mesmo espaço e, por intermédio dessa vizinhança e dos encontros por ela suscitados, criar as ligações das histórias entre si. Mas não se encontra uma intriga unificadora - nem mesmo através da suposta devoção ao santo da terra que dá o título ao livro.
Nada disto é impeditivo em termos de prazer de leitura. Reencontramos a mesma mestria de linguagem, o mesmo ritmo, a mistura de registos e intenções, embora mais comedidas. Perdeu-se muita da crueldade. Exacerbou-se, no entanto, uma ironia mais feroz espadeirada em particular nos jogos de palavras com o tempo e o envolvimento do leitor: «Em meia hora se está na praça, isto no burro de Libório Arlindo, porque através da escrita é apenas uma questão de linhas. Aqui está o sapateiro a apregoar os seus artigos bem fresquinhos, ele chegou agora mesmo.» (pág. 83).
As cenas decorrem no Alferce. Começam com o namoro entre Severino castanho e Catarina e acabam com estes casados e à espera do primeiro filho. Ela fora conquistada com a ajuda das mezinhas da portentosa bruxa da Corte da Pomba, e são abençoados pela abade Simão Agostinho. Com eles se cruzam moleiros, sapateiros, o regedor, etc. - personagens quase tiradas de Júlio Dinis, exiladas nos confins dos Algarves num mundo às avessas. Quem mais contribui para que tudo ande de pantanas é, inevitavelmente, a bruxa, que, volta não volta, se engana - tanto põe homens a mugir quanto cães a falar: «Há três dias que a mulher não dorme, sempre a pensar numa solução para o caso. São tantas as poções que ela vai experimentando que já gritam algumas árvores, já choram muitas pedras e até já ri a Lua noite sim noite não. E também tem chovido grandes aguaceiros de sangue e vinho, que são difíceis de distinguir pois a cor é praticamente igual. Os bêbados, no entanto, já descobriram o segredo e sabem que de dia é sangue e de noite é vinho.» (pág. 77).
Com «Breviário das Más Inclinações», de José Riço Direitinho, e «A Encomendação das Almas», de João Aguiar, este livro desenha um triângulo que marca o rejuvenescimento de uma linha de tradição da nossa literatura que parecia esgotada.

Carla Maia de Almeida, Notícias Magazine, 27.04.97
Valha-nos Deus!
No Alferce, quando um lagarto passa incólume pelas ruas, sem que ninguém lhe acerte com uma pedra ou os gatos e os cães o tomem por aperitivo, isso é assunto de conversa na taberna. O Alferce é uma terra de gente estranha, com nomes mais estranhos ainda (Ercínio Estrafunca, Coxo Amêjongra, Rosendo Cenoura, Fulgêncio Caroço, etc., etc.), e onde os acontecimentos quotidianos não o são menos. Que pensar, por exemplo, de uma vaca que perde o mugir, reaparecendo no felizardo que ganhou o amor de Catarina? «É vê-los todas as noites ao luar, ela falando, ele mugindo, mas sempre juntos.» Coisas da bruxa da Corte da Pomba? O mais provável. Explicam-se estes e outros assombros no último livro de António Manuel Venda, «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão». Quem gostou dos dezasseis contos de «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» (e um título destes não é todos os dias...), surpreendendo-se com a prosa invulgarmente trabalhada deste novo escritor, sentir-se-á grato por poder prolongar o feitiço.

João Vila, Jornal de Monchique, 21.03.97
Mais um livro à Venda
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O enredo passa-se no Alferce da segunda década do Século XX e dos factos ocorridos na época apenas colhe umas ténues referências.
Segundo o autor, as histórias fantásticas que se sucedem ao longo da narrativa e que têm como personagens centrais, entre outras, a bruxa da Corte da Pomba e um santo, o Senhor S. Romão, baseiam-se em lendas e acontecimentos contados pela sua avó Maria Teresa. Outras personagens que servem de fio condutor, Severino Castanho e Catarina, são mesmo inspirados em familiares seus.
Com um estilo irónico e uma escrita nada pretensiosa, António Manuel Venda parece estar a cativar um público jovem e simultaneamente a reacender as velhas histórias de lareira.

S/ indic. autor, Gentleman, 30.06.97
De leitura obrigatória
O fantástico e o maravilhoso dominam a temática do segundo livro deste jovem autor, que lhe valeu o prémio «Cidade de Almada» em 1996. O ambiente das serranias algarvias de Monchique, da vivência das gentes de aldeias vizinhas, ditada pelos ciclos da produção agrícola, num passado recente. Um monte que separa o quotidiano dos habitantes do Alferce e da Umbria e o namoro de dois jovens, Severino Castanho e Catarina, ambos órfãos, que têm no abade Simão Agostinho um cúmplice do seu amor. As vidas dos dois apaixonados cruzam-se no baile nocturno da festa do Senhor S. Romão, santo venerado pela cura de males de raiva. Mas o estranho acidente de caça em que morreram o pai e o irmão de Catarina criou o medo, no seio das gentes da terra, de que a bruxa da Corte da Pomba traçara trágicos destinos.


Prémio Literário Cidade de Almada

Intervenção de Manuel Frias Martins, como porta-voz do júri, na cerimónia de entrega do «Prémio Literário Cidade de Almada 1996», 27.07.96
Como em outras coisas da vida, também na literatura se pode dizer que há gostos para tudo. Pode-se dizer, mas uma tal afirmação revela quase sempre uma de duas coisas: ou uma grande má fé quanto a padrões qualitativos essenciais do comportamento humano, ou uma mistificação deliberada dos critérios de discernimento do belo.
Com esta introdução pretendo dizer o seguinte. O que estamos aqui a celebrar é a «escolha» de um romance inédito entre os trinta e oito romances a concurso. Uma «escolha» levada a cabo por um júri composto por três pessoas com personalidades distintas, opções artísticas diferenciadas e pertencentes a gerações razoavelmente diferentes. Ou seja, o que estamos aqui a celebrar é um critério de escolha assente exclusivamente num denominador comum: a qualidade estética de uma obra intitulada «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão», que veio a revelar-se ser da autoria de António Manuel Venda.
Enquanto crítico literário e propfessor de literatura, acredito que os envolvimentos mais imediatos que mantemos com um texto derivam do modo como o nosso imaginário de leitores se cruza com o imaginário desse mesmo texto. Ora acontece que esta obra não prendeu de imediato a minha atenção de leitor. Por uma razão muito simples. É que o meu imaginário tipicamente urbano não se envolveu de imediato com o imaginário tipicamente rural por que esta obra configura as suas áreas temáticas. Uma leitura menos impressionista, isto é, uma leitura mais cuidada ou verdadeiramente crítica, acabou por me revelar as inegáveis qualidades narrativas, de efabulação e de construção estilística de «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão». O prémio foi-lhe justamente atribuído, mas deste meu envolvimento contraditório com a obra ficou a prova provada de que a crítica literária, se ficar pela superficialidade da leitura impressionista, está condenada a unicamente exibir injustiças. Infelizmente, este é o panorama que hoje se encontra com mais frequência nos jornais portugueses que ainda dedicam algum espaço à divulgação de obras literárias.
«Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão» é uma obra que narra, com muito afecto e não pouca ironia, alguns daqueles episódios do dia-a-dia de uma comunidade rural bem no interior do Algarve. Mas os nós com que se atam comportamentos, crenças e valores podiam muito bem localizar essa comunidade em qualquer sítio de um Portugal marcado pelas mesmas ideossincrasias rurais. O que aqui nos é dado é um conjunto de quadros, ou de retratos em movimento, do que pode ser a identidade de um povo, e muito particularmente dos rostos dos seus actores, dos homens e mulheres que no seu existir colectivo, nas suas decisões, escolhas e preferências socialmente construídas, nos mostram as nossas mais fundas pulsões nacionais e as mais sólidas residências intersubjectivas do nosso modo de estar no mundo como portugueses. E tudo isto nos é dado num estilo seco, contido, sem reverberações retóricas e com um ritmo narativo exemplar. Creio que vale a pena escutar um curto excerto que se encontra no início desta obra:
«O Senhor S. Romão foi encontrado na Umbria, dentro de uma sementeira de favas. É um achado tão velho que até a mulher que o fez já morreu e agora ninguém se lembra de como se chamava ou de como era a sua figura. Diz o povo que a ela Deus se encarregou de lhe arranjar um lugar bom para a alma, e isso deve ser certo, porque os sacrifícios em favor do divino têm fama de vir a receber compensações depois da morte. O Céu, como apregoa o senhor abade Simão Agostinho, é só para quem o merece, e da mulher que um dia deu com o Senhor S. Romão pode-se dizer à confiança que está nessa conta.
Sempre tem sido muito falado o que ela passou com o santo, depois de o ter trazido aqui para a igreja do Alferce e de o ter colocado no altar maior. Ele desapareceu em menos de nada, e isso foi uma coisa que deixou toda a gente de boca aberta e sem saber o que pensar. Mas passado um tempo a mulher voltou a encontrá-lo nas ditas favas e tudo voltou ao princípio. De novo o levou para a igreja, de novo ele fugiu, e assim foi de novo em novo até que um belo dia assilhou. Da igreja não mais saíu, descansou a mulher, comeram-se as favas e o povo orou.»
Se me é permitido traçar uma conclusão generalizante, arrisco dizer que «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão» se inscreve numa linha de reconfiguração da literatura portuguesa actual que decorre de uma consciência da arte assente em dois vectores interligados. Por um lado, na recusa de barroquismos palavrosos. Por outro lado, na valorização da linguagem sobretudo por razões de legibilidade e não de pretensas rupturas ou experimentações.
Estou convencido de que os melhores escritores não procuram a literatura mas, antes, são por esta procurados. Quero dizer com isso que nos nossos melhores escritores a literatura acontece tão naturalmente como se respira. Depois é a cultura que faz o resto. Mas este resto é decisivo. E é decisivo exactamente porque é por ele que um escritor se define como leitor de outros escritores e, nesse processo, se apresenta como fazedor de um objecto estético cuja fruição deriva exactamente da ressonância que nele passa a ter a própria cultura da humanidade. Uma obra literária é sempre, por isso, uma consequência da memória, e esta, por sua vez, é tanto mais rica quanto maior for nela a contaminação da cultura. «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão» é uma obra cujo mérito artístico se afirma sem contestação exactamente porque o seu autor soube colher na cultura os dados por que a literatura se prolonga como difícil e aturado trabalho estético depois de ter «acontecido» naturalmente ao escritor.Fiquei a saber que este é um romance de um homem ainda jovem, com uma actividade profissional aparentemente pouco compatível com o exercício da literatura. Quanto à juventude do autor só tenho a dizer o seguinte: ainda bem, pois é sinal de que se houver convicção artística por parte de António Manuel Venda, então estamos hoje a celebrar também o aparecimento de um escritor de talento. Um escritor cuja obra se não afirmou por compdrios, amizades ou favores jornalísticos, mas pelo reconhecimento insuspeito do seu próprio mérito. Quanto à incompatibilidade profissional, só tenho a dizer aquilo que afirmei atrás: a literatura não se procura, acontece.