quinta-feira, 14 de junho de 2007

«O que Entra nos Livros»

(Romance, AMBAR, 2007)

Resumo
Uma estranha carta sobre o romance de António Manuel Venda «O Medo Longe de Ti», publicado em 2003, chega ao autor através da editora, depois de para lá ter sido enviada por um homem que assina J. D. Sapinho Júnior. Trata-se de um velho livreiro de Évora que parece muito interessado numa das personagens e que a certa altura escreve o seguinte: «poderia ajudar-me desde já se, na volta do correio, me enviasse (caso tenha nos seus apontamentos) uma descrição o mais detalhada possível de uma personagem do seu último romance, o mágico velhinho, personagem da qual, em todo o texto (que li por diversas vezes), não abunda a caracterização». O livreiro tem uma longa história para contar. (entrevista aqui)


O início do livro
Chamo-me António Manuel Venda. Talvez não devesse começar assim, até porque se este relato for publicado, imaginemos que sob a forma de livro, o nome do autor aparecerá na capa. E depois, no interior, é bem provável que esse mesmo nome seja repetido quase até à exaustão, no topo de cada uma das páginas da esquerda, as de numeração par, numa espécie de desafio ao título, que dominará cada uma das da direita. Mas também há a hipótese de este relato não conhecer a publicação, e aí as coisas já serão diferentes. Se alguma pessoa o encontrar, nem interessa agora estar com especulações sobre o tipo de suporte, poderá querer logo saber quem o escreveu. Neste caso, a presença do nome a abrir o texto não será despropositada. Mas adiante, que os factos são muitos e importa deixá-los escritos antes que a memória, a minha memória, os remeta para um qualquer compartimento enevoado, daqueles onde as coisas parecem ser apenas o resultado de um sonho.
Em Setembro de 2003 publiquei um romance intitulado «O Medo Longe de Ti». Conta uma história de amor. Um jovem escritor português, que vive rodeado pelas suas personagens, encontra na Alemanha a rapariga mais bonita do mundo. Os dois apaixonam-se, mas o jovem escritor acaba por fugir. Isso acontece quando o medo de algum dia perder a rapariga se torna mais forte do que ele. Abandona um programa de estudos numa universidade da Floresta Negra em que ambos se tinham matriculado e viaja de regresso a Portugal. Uma das suas personagens, um mágico pequenino e de idade avançada, que lhe apareceu pela primeira vez quando estava na floresta em cima de uma árvore, faz a mesma viagem. O jovem escritor chega a imaginar como ele o segue num carro de modelo igual ao seu, e da mesma cor, mas de dimensões bem mais reduzidas. E as outras personagens acabarão por fazer um percurso idêntico, os «amigos», como o jovem escritor diz, e os «seres maus», expressão que também lhe pertence. Dezoito ou dezanove anos depois, o escritor, que nunca tirou da cabeça a rapariga mais bonita do mundo, e que continua a viver rodeado pelas suas personagens, inclusive pelo mágico, que é referido ao longo do romance apenas como mágico velhinho, tem um encontro surpreendente, em Lisboa, durante um debate literário.
Este é um resumo da história de «O Medo Longe de Ti». Por causa desse romance, durante os meses seguintes à sua publicação participei nalgumas iniciativas, principalmente em bibliotecas ou livrarias, além de feiras do livro. Falei da história, li pequenos excertos, conversei com leitores, estive em debates, dei alguns autógrafos... Enfim, a mesma coisa que tinha acontecido com os livros anteriores. Até que um dia, mais de um ano depois de o livro ter aparecido nas livrarias, corria o mês de Janeiro de 2005, aconteceu algo absolutamente… Bem, ia para escrever surpreendente, mas não, foi mais do que isso, muito mais.
Tudo começou com um envelope que recebi dos serviços da editora e que deixei uns dias em cima da secretária, por abrir, pensando que se tratava do convite para o lançamento de algum livro. Quando finalmente o abri, dei-me conta de que não era nada disso, de que se tratava de uma carta de alguém a tentar contactar-me através do endereço da editora. Não aparecia o nome de uma pessoa no remetente, mas sim o de uma livraria: «Sapinho Livros Lda». Confesso que não senti uma grande curiosidade em ver o conteúdo, tanto que coloquei a carta na pasta do trabalho e só à noite, ao arrumar alguns documentos, acabei por ficar a saber de que é que se tratava. Tinha apenas um cartão e uma folha A4, escrita de um dos lados, à mão, numa caligrafia muito cuidada e com uns curiosos salamaleques nas letras maiúsculas.
(…)


A carta do livreiro

Caríssimo escritor A. M. Venda

Escreve-lhe J. D. Sapinho Júnior para convidá-lo a deslocar-se à sua humilde livraria, em Évora, no endereço que poderá ver no cartão em anexo. Não é um convite para uma palestra sobre o seu último romance, nem tão-pouco para uma sessão de autógrafos. É, antes, para uma conversa comigo, que seria bom que tivesse lugar no espaço da livraria, e sobre a qual (a conversa, não a livraria) desde já lhe peço o mais absoluto sigilo. Agradeço que me confirme a sua vinda através do número de telefone que aparece no cartão.
Não tenho o seu endereço, nem sei onde reside (talvez em Lisboa, como boa parte dos nossos escritores), pelo que resolvi contactá-lo através da prestigiada casa que o edita.

Cumprimenta-o,

J. D. Sapinho Júnior

Acrescento – poderia ajudar-me desde já se, na volta do correio, me enviasse (caso tenha nos seus apontamentos) uma descrição o mais detalhada possível de uma personagem do seu último romance, o mágico velhinho, personagem da qual, em todo o texto (que li por diversas vezes), não abunda a caracterização.


Textos de opinião sobre o livro

Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 22.06.07
Viagem à volta do nosso mundo
O mundo de António Manuel Venda, que nos habituámos a ir descobrindo como se fossemos exploradores em busca da última mina perdida da escrita, tem muito de um aroma que se foi perdendo: o do Portugal profundo. Daquele que se vislumbra nas cercanias de Monchique, que mostra um país perdido e que procura um cais de onde pode partir em busca de novas descobertas. Este seu novo romance é uma forma de o autor seguir a sua própria rota dos descobrimentos. Seguindo a carta de um velho livreiro de Évora, que tem interesse numa personagem que o próprio autor descreveu num romance de há alguns anos, autor e personagens redescobrem-se; voltam a iluminar-se referências relacionadas com a escrita e, também, acabamos sempre por encontrar pessoas e locais que fazem parte do imaginário de Venda, entre a cidade e o país rural, entre a auto-estrada e as outras que iludem as vias verdes. Há nestas páginas, muitas vezes, essa deliciosa sensação de prazer, de reconforto, com um país que vai desaparecendo quase sem darmos por isso. Ali cruzam-se também vidas: «O meu filho cuida melhor das propriedades, e eu cuido melhor dos meus livros. E com a livraria realizei um sonho. Acompanho tudo, vivo, como dizer… Vivo a vida dos livros… Mas é um trabalho duro, mais do que aquilo que eu esperava.» Vidas que se encontram neste livro que se vai entranhando no nosso olhar, no nosso pensamento, como um secreto prazer que se instala e nos faz olhar com toda a atenção para o mundo que nos cerca. Venda consegue transmitir-nos neste livro um secreto sentimento: o do prazer de ver com calma as personagens e os locais. Algo que a velocidade nos fez perder ao longo dos últimos tempos. Afinal, o que poderia acontecer se, como diz o livreiro Sapinho Júnior, «uma personagem que sai de um livro e então começa a entrar noutros livros?!». Desafio para a ciência e para a literatura; se isso acontecesse, mostraria como este livro é um sinal do destino.
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Manuel Nunes, Blogue «Leques Agitados» (http://lequesagitados.blogspot.com/), 09.08.07
Imaginem um romance em que o autor empírico é o narrador, um escritor que mora num monte ali para os lados de Montemor-o-Novo, e que, por imperativos profissionais, passa o tempo a percorrer o país do seu local de residência para a sua terra de origem – Monchique, onde é autarca – e para outros sítios, como Lisboa e Santarém. A história anda à volta dos livros e de uma personagem muito especial de uma das suas obras (o romance «O Medo Longe de Ti»), personagem essa que, por um insondável mistério, salta de romance para romance e deixa um pobre livreiro de Évora – o senhor Sapinho Júnior – no limiar de uma grave crise de nervos. Depois, há uns escritores de papelão – uns respeitáveis, outros nem por isso – que atravancam a livraria do tal senhor de Évora. Um desses escritores, por sinal uma escritora, talvez a menos respeitável de todos, é vandalizada por via de um inestético bigode que alguém desenha no seu perfeito rosto. E fala-se de Gabriel García Márquez, Lídia Jorge, Camilo José Cela, Dinis Machado, Mario Vargas Llosa, José Cardoso Pires, Ondjaki e tantos outros. Um produtivo diálogo com a literatura e com a magia dos livros. Não deve ser por acaso que a tal personagem que está sempre a mudar de romance se chama justamente «mágico velhinho». Grande livro, meus senhores!
.ores!.
José Vilhena Mesquita, Apresentação em Monchique, 29.09.07
Aquilo que verdadeiramente entra no livro de António Manuel Venda
A primeira questão que se sobrepôs à leitura deste livro de António Manuel Venda foi precisamente a mais elementar, isto é, a de saber se efectivamente estava, ou não, perante um romance na verdadeira acepção da palavra, e do teórico conceito que lhe é inerente. O trago de dúvida com que fiquei no final da sua leitura obriga-me a definir os termos e os conceitos em que me exprimo. Um pouco à laia de Voltaire, urge pois aclarar os conceitos com que nos expressamos para que a sintonia das palavras não se disperse na confusão ou no calor da discussão.
Comecemos por definir a palavra «romance», para perceber sem mais delongas aquilo que traduz o seu conceito. A palavra, na sua nudez original, deriva do étimo latino romanice, do qual descende romanicus, que significa, em latim popular, uma narrativa, verdadeira ou imaginária, escrita em prosa ou verso, repartida por cenas, quadros ou capítulos, pejados de pormenores e longas descrições, cuja acção se desenrola através de várias personagens, de entre as quais só algumas assumem o protagonismo de se tornarem no centro da diegese. Isto no que concerne à palavra.
Porém, no que incumbe ao conceito de romance, importa dizer que só muito tardiamente é que o mesmo foi equacionado, numa perspectiva mais simples, mais sintetizada, mas não menos abrangente. Com efeito, só no declinar do século XVIII é que se definiu o romance como «uma narração em prosa de uma acção fictícia que tem por quadro a pintura de costumes». Dito desta forma não há nada mais simples, nem menos directo. E sendo assim, a obra «O que Entra nos Livros», de António Manuel Venda, integra-se inquestionavelmente, tanto no conceito como na palavra, na correcta designação de romance. Não unicamente de «costumes» – porque isso está fora de moda e qualquer dia nem existe –, mas de um maravilhoso fantástico, a que mais adiante me referirei com relativa acuidade.
Ao longo da História da Literatura Portuguesa publicaram-se diversos tipos de romances: históricos (Romantismo); sócio-moralistas (Naturalismo), ético-científicos (Realismo); político-revolucionários (Neorealismo); anti-dogmáticos e universalistas (Modernismo) psico-surrealistas (Pós-Modernismo); e outros que nem sei até como qualificá-los. Em todos estes modelos de criação ficcionista o que está em causa são os costumes das sociedades humanas no tempo e no espaço, numa espécie de simbiose, ou de intercepção espacial, entre a História e a Sociologia.
Ora acontece que o romance «O que Entra nos Livros», afasta-se de todos estes modelos classificativos, ou de todas os movimentos literários que acabei de enunciar sumariamente, muito embora o seu discurso narrativo se integre naquilo a que chamo o «modernismo milenarista». Isto é, na tentativa de criação artística através do pictorismo ficcionista da palavra, ascendendo a patamares supra-fantasistas, que rapidamente se transformam numa diegese fantástica, surreal, imateral e anti-ascética. Nada de novo, diria, se com isso não se cortassem definitiva e diametralmente os cânones da ficção dominante. O paradigma romancista, na sua feição soberana e imperante, preocupa-se com a construção de grandes quadros sociais, ao longo dos quais o autor vai fazendo uma descrição evolutiva dos interesses percepcionais e dos seus consequentes jogos de poder, assim como das virtudes e dos defeitos dos protagonistas, dos assimilados ou dos desintegrados numa sociedade enquistada nos defeituosos costumes do individualismo social. O romancista torna-se assim num crítico e num psicanalista da sociedade, no que isso tem de mais contraditório e de paradoxal, usando geralmente o amor e as relações laborais nas suas conexões e correspondências com as intrigas que vulcanizam os diversos poderes em que se reparte a vida real. O romancista é, em suma, um ficcionista do real.
No caso presente, a natural bonomia de António Manuel Venda, a sua candura bucólica, a sua inocência e pureza de carácter, insuflada de um certo torpor algarviista, influenciou decisivamente a sua inspiração e consequente criação artístico-literária, visivelmente enraizada nos telúricos vergéis da sua saudável Monchique, onde os romanos procuravam a cura para os seus achaques através do princípio natural da água, ou seja, o termalismo, modernamente designado por SPA, sigla romana que se traduz por «salute per aqua».
Neste livro, como aliás, em quase todos os outros da sua lavra, a terra-natal, o Algarve e a peneplanície alentejana, que lhe serve hoje de residência e de ninho conjugal, estão presentes com uma insistente acuidade, e até por vezes com inusitado protagonismo. O mesmo acontece com as reminiscências da sua infância e juventude, aqui e ali afloradas, num contrastante quadro dos sentidos, entre a fresca e verdejante montanha e as estivais praias do barlavento algarvio. Essa enriquecedora vivência, a que certamente se conjugaria uma marcante e muito atenta convivência social, serviu-lhe, e provavelmente ainda lhe servirá, para povoar de vida os seus romances, os seus contos e as suas novelas, cujo inquestionável talento, e insofismável sucesso literário, enobrece hoje não só a literatura portuguesa como, muito particularmente, o seu e nosso Algarve.
Relativamente ao estilo, à concepção narrativa deste livro, direi que impera na estruturalização dos seus capítulos uma insistente, e consistente, preocupação realista da envolvente descritiva, através do recurso ao enquadramento paisagístico em que decorre a diegese. A descrição de aves e animais que abundam no montado onde reside, dos pormenores sobre a flora alentejana e sobre o parco coberto florestal, a contrastar com a sua Monchique originária, é uma constante neste romance. A descrição das estradas por onde circula, com as alarmantes brigadas de trânsito (que por insistência descritiva acabam por o interceptar quase no final do livro), assim como as pessoas que na berma da estrada, nos largos e jardins das aldeias, aguardam serenamente o decurso dos seus dias, numa entediante monotonia. Apesar de aqui e ali depararmos com uma certa acintosidade crítica, contra a ditadura salazarista, mas também contra os políticos actuais, a que não escapam os autarcas, o certo é que a acção do romance decorre de forma lenta e parcimoniosa, à imagem do clima mental, mas também socioeconómico, que se vive nas terras sulinas. Mesmo com essa aparente lentidão, desse torpor ao Sul, a minha atenção de leitor (ainda que pouco disponível para a ficção literária) não se conseguiu despegar das páginas que se iam sucedendo, envoltas no crescente mistério da fantasia que paira por detrás das palavras.
O autor, na sua prodigiosa imaginação, assume-se, quase despudoradamente, como personagem principal, como confidente do leitor, e por vezes como um cavaqueador tertuliano, do qual não nos podemos divorciar. Num estilo pós-moderno, António Manuel Venda encanta-nos com a fantasia dum «mágico velhinho», figura levemente fantástica, duma bonomia desarmante e quase infantil, muito invulgar por causa dessa inofensividade, contrária à agressividade das personagens surreais que caracterizam este género de literatura.
Acima de tudo, o livro está primorosamente bem escrito, escorreito na linguagem e absolutamente correcto na estrutura frásica e na concordância gramatical, em que por vezes o autor se coloca, diegeticamente, com pruridos de perfeccionista. Numa visão sintética e desconstrucionista da concepção narrativa, eu diria que este livro é uma espécie de alegoria aos Livros e ao Mundo da Escrita, cuja acção se desenvolve num quase monólogo entre o autor e o leitor. Numa estratégia modelarmente concebida, a atenção do leitor é constante e abruptamente interrompida pela desconcertante forma como se encerram os capítulos, deixando-lhe um trago de insaciável curiosidade. Desse estratagema narrativo resulta uma inebriante concentração do leitor na sucessão diegética das páginas, que o leva sempre por diante na progressiva sucessão dos capítulos.
Falando, ainda mais concretamente, deste livro, parece-me que, em primeiro lugar, dele ressalta a surpresa do título: «O que Entra nos Livros». Assim, de repente, apetece-me dizer que o que está dentro deste livro mais não é do que a própria alma do autor, consubstanciada no seu talento e na sua genialidade, eufemisticamente identificada na figura do «mágico velhinho». Acima de tudo, o que está dentro deste livro é a rara e mui singular capacidade imaginativo-fantasista de António Manuel Venda.
Curiosamente, ao contrário do que seria normal e expectável, este livro não se distancia dos anteriores; bem pelo contrário, engasta-se no romance que o antecede, intitulado «O Medo Longe de Ti». Não é a sua continuação, como se de uma saga se tratasse, mas antes de um romance de anamnese, em que uma das figuras secundárias e quase inócuas do livro anterior passou, ou saltou qual malabarista, para o livro seguinte, como se tivesse vida própria, ou, talvez mais concretamente, como se já existisse antes de ser inventado. É a figura do «mágico velhinho», uma criatura inventada pelo autor, inocentemente inspirado em «Branca de Neve e os Sete Anões», obviamente uma reminiscência da infância, modelado pela sua imaginação no aspecto físico do Dunga, mas com o carácter e os trejeitos do Zangado.
Tudo aparentemente infantil e inocente, mas que no decurso da narrativa se transforma numa misteriosa errância psicanalítica, pejada duma envolvência fantasista e quase fastasmática, geradora dum clima enigmático, nebuloso e enleante. O misterioso e insondável «mágico velhinho» vagueava pelos livros, saindo de um e entrando noutro, numa irrequieta odisseia entre autores de diversos quadrantes culturais, aparentemente desconexa e sem qualquer critério, mas que, ao fim e ao cabo, revelava ou estava intimamente relacionada com as preferências literárias do próprio António Manuel Venda. Em certo sentido, o «mágico velhinho» constitui a personificação do espírito errante e irreverente do próprio autor.
Mas o mais desconcertante neste romance é o facto de ser apenas constituído por duas personagens, mais essa omnisciente figura do «mágico velhinho». Em boa verdade, na intercepção dos diferentes estratos narrativos, estão apenas duas personagens, o Autor, especificamente identificado, e o Livreiro, um tal Sapinho Júnior, proprietário duma livraria em Évora, que numa simples carta indagava o «caríssimo escritor» sobre os verdadeiros traços fisionómicos do «mágico velhinho». Esta missiva funciona como rastilho para despoletar todo o romance em torno de uma absoluta ficção: o «mágico velhinho», esse pressuposto duende ou gnomo, híbrida figura inspirada no Dunga, um anão do humor infantil, que talvez por humildade do autor nunca poderia transformar-se num Mago Merlin da Corte do Rei Artur.
O certo é que em torno do «mágico velhinho» nasce, cresce e se desenvolve um belo romance, uma apaixonante história de fantasia e de mistério, que absorve e confunde a atenção do leitor, transformando-se numa espécie de romance policial, sem violência, sem sangue e sem criminosos.
Perante tudo isto, coloca-se-me, porém, e a priori, esta pertinente questão: terão os livros vida própria, e, por isso, a faculdade de gerarem descendência? Terão as personagens de ficção a possibilidade de se tornarem reais e de se independentizarem do berço/ livro em que nasceram? Lendo atentamente «O que Entra nos Livros» somos levados a crer que sim, os livros reproduzem-se e as personagens podem fugir deles para virem connosco passear por entre as nossas vidas.